domingo, 19 de janeiro de 2014

O Iluminismo a partir de Cândido

Resenha: "Cândido ou o otimismo", de Voltaire.
Editora Nova Alexandria, 1995.
Tradução de Marcos Araújo Bagno
Apresentação de Fábio de Souza Andrade

Retrato de Voltaire pintado por Maurice Quentin La Tour, c. 1736. Fonte: Wikipedia.org.en



Este pequeno exercício tem como objetivo analisar a obra " Cândido" de Voltaire (1684-1778), buscando nesta, as influências de John Locke (1603-1689) a partir de suas idéias contidas no " Ensaio acerca do entendimento humano".

François Marie Arouet, conhecido pelo pseudônimo de Voltaire a partir de 1718, foi um filósofo extremamente crítico à Igreja e sua influência na sociedade francesa como na Europa, celebrizado por sua frase: "Écrasez l'infâme!", ou seja, esmagar a Infame , a Igreja. Quando escreveu "Cândido" em 1759, seu intento era atacar o fanatismo religioso ainda muito presente naquele tempo, tendo como pretexto ou mote as explicações obscurantistas dadas para o terremoto que arrasou Lisboa em 1755, pois o clero católico insistia na visão de "castigo divino".

A crítica, no entanto, não se encontrava apenas à Igreja, mas também aos pensamentos filosóficos de Leibniz (1646-1716) como também às idéias inatas de Descartes (1596-1650), as quais já tinham sido refutadas por John Locke.

Leibniz é criticado a partir da sátira , pois as continuas desgraças de Cândido e de seu mestre Pangloss (o maior filósofo e metafísico da Alemanha, alusão direta de Voltaire a Leibniz) são uma manifestação caricatural do otimismo desmedido do filósofo alemão. Quanto a Locke, Voltaire sofreu uma forte influência do pensamento inglês (referia-se a Inglaterra como a "ilha da Razão" e ali vivera exilado entre 1726 e 1728), pois as aventuras de Cândido pelo mundo e sua incessante visão de que o castelo onde nasceu na Vestfália era "o melhor dos mundos possíveis" representam a contraposição entre o conhecimento dogmatizado (Cândido assim acreditava apenas por ouvir seu mestre Pangloss e crer na sua plena certeza, sem contestá-lo) e a prática sensorial (segundo o pensamento de Locke, o conhecimento se dá a partir da experiência e da reflexão). 

"Cândido" , assim como outras obras literárias de Voltaire, apresenta uma estrutura de obra de tese (proposição, desenvolvimento e conclusão) dotadas de um estilo leve e despojado, com um enredo fantástico repleto de aventuras e peripécias de seus personagens, as quais são inverossímeis , passando ao leitor uma impressão de estar assistindo uma peça de teatro de marionetes, pois o narrador conduz os personagens conforme bem entende.

Cândido era um rapaz muito tranquilo (filho bastardo de uma irmã do barão Thunder- ten-tronckh, um poderoso nobre da Vestfália, região ocidental da Alemanha, junto à fronteira da França) que foi educado nos melhores costumes, sendo dotado de uma boa índole e muita vivacidade. Teve como seu preceptor, Pangloss, um metafísico e filósofo que:" provava admiravelmente  que não há efeito sem causa e que , neste mundo, o melhor dos mundos possíveis, o castelo do barão era o melhor de todos os castelos e a senhora  do senhor barão a melhor de todas as baronesas."[1]     

 No entanto, o jovem Cândido se apaixonou pela filha do barão, Cunegundes, sendo   flagrado pelo barão quando a beijava. Devido a falta cometida, Cândido foi expulso a pontapés do castelo do barão e encontrou-se só no mundo. Voltaire, usou a imagem bíblica do "Pecado Original" comparando Cândido com Adão, ambos foram expulsos do "Paraíso" devido a queda nas tentações femininas.

Solto no mundo, Cândido começa uma longa viagem repleta de acontecimentos desfavoráveis, tentando a todo custo provar que o sábio Pangloss estava certo, porque:" tudo vai pelo melhor possível"[2] . Tais infortúnios de Cândido ao longo da narrativa  constituem-se na experimentação que ele deveria passar afim de comprovar sua visão de mundo, a qual derivava do pensamento de seu preceptor.

Voltaire mostrou que Cândido em sua ingenuidade foi guiado pelo seu desejo de reencontrar Cunegundes e nesse ínterim entender melhor o mundo, sempre altivo, sempre seguro que tudo tinha uma causa e esta relação (causa e efeito) regia as coisas. Cruzando a trajetória de Cândido com o pensamento de Locke a respeito das hipóteses: " Não devemos assumir nenhuma[ hipótese] muito precipitadamente ( que a mente,  que sempre penetraria nas causas das coisas, e teria  princípios para apoiar, é bastante para fazê-lo) até que tenhamos examinado bem os pormenores e feito vários experimentos, nesta coisa que explicaríamos por nossa hipótese, e até verificarmos se isto de algum modo concorda com elas; se nossos princípios nos levarem bem ao fim e não forem tão inconsistentes com um fenômeno da natureza, como parecem tão acomodados a explicar outro , ao menos, tomemos  o cuidado para que o nome princípios não nos iluda, nem se imponha a nós por fazer-nos receber isto como uma verdade inquestionável, que é, no melhor dos casos, muito duvidosa conjectura; tais são a maioria( quase disse todas) das hipóteses na filosofia natural."[3] 

A discussão de Locke gira em torno da questão da elaboração de hipóteses coerentes e de sua conseqüente experimentação para a construção do conhecimento, não acatando qualquer " princípio" em definitivo e mesmo que tenho sido provado, que este não se torne um dogma . Tal fato,  vai ao encontro da perspectiva de Voltaire, o qual questiona o fanatismo e a exacerbada manutenção dos dogmas da Igreja, pois as ações de Cândido ocorrem sem reflexão, pois o mundo era conforme Pangloss dizia.

A aceitação pura e simples de Cândido, aos poucos se transforma no despojamento dos preconceitos, dando espaço ao aprendizado a partir de sua relação com o mundo. Uma relação própria com o mundo e bem diferente da "redoma" do castelo em que vivia na Vestfália , constituindo uma visão positiva da Natureza, não concebendo-a como uma desordem constante repleta de infelicidades, mas de um processo rico de aprendizado.

Um dos principais motivos dos infortúnios de Cândido foi as gigantescas riquezas que trouxera do El Dorado, o lendário país das riquezas infinitas, pois somente um indivíduo puro como Cândido poderia encontrá-lo. Tais riquezas que trouxera foram responsáveis pelo despertar da cobiça dos homens , os quais se propunham a ajuda-lo, mas sempre querendo lucrar muito ou mesmo enganá-lo, aproveitando-se de sua ingenuidade.

Cândido caiu em desgraça com o barão devido ao seu amor por Cunegundes e este foi o motivo que guiou toda sua trajetória, a idéia de reencontrar sua amada e ser feliz. Todavia, ao longo da busca descobre que sua amada fora vítima das mais bárbaras violências, havia se tornado escrava sexual (Voltaire aproveita esta circunstância para criticar a devassidão de alguns membros da Igreja, entre eles o próprio papa) e já não era tão bela quanto fora em sua juventude. 

Na definição do próprio Cândido, o otimismo é dizer que "tudo está bem, quando tudo vai mal" , mas esta chama o guiou até seu intento, quando reencontra Cunegundes já não era tão bela e formosa, encontrava-se pobre, numa vida extremamente infeliz e mesmo nestas condições quis ficar com ela. Naquela altura, Cândido já havia perdido a maior parte de sua fortuna e só lhe restara o casebre que morava com Cunegundes, a  velha criada, Pangloss, Martinho e Cacambo. 

Final feliz? Não , estas circunstâncias não trouxeram toda paz e harmonia:" A mulher dele , tornando-se todos os dias mais feia, fez-se rabugenta e insuportável; a velha adoeceu e tornou-se  ainda pior de gênio que Cunegundes; Cacambo  que trabalhava no jardim, e ia vender legumes a Constantinopla, via-se carregado de trabalho e amaldiçoava seu destino; Pangloss sentia-se desesperado por não brilhar em alguma Universidade da Alemanha; quanto a Martinho, estava firmemente persuadido de que se está mal em toda parte; recebia as coisas com paciência." [4]

            A visão de Cândido ao fim da história se altera, pois suas “aventuras” lhe trouxeram uma perspectiva diferente, já que travara contato com o mundo real e assim pode constatar que o mundo não era tão perfeito e pode ver que sue mestre, Pangloss, também já não acreditava nesta fórmula de viver (Tudo está sempre bem, mesmo estando mal). O desfecho da história, não é uma visão de pessimismo violento, porém mostra a necessidade de uma maior reflexão sobre as experiências, deixando de depositar todos os desígnios na Providência Divina.

Voltaire, crê numa Entidade Superior aos homens, mas que não se contradiz com o pensamento racional, valorizando portanto, a inquietação e a reflexão humana. Cândido, termina com uma pequena casa, uma mulher e alguns amigos e conversando com um sábio árabe, este lhe revela o que seria vital: o trabalho, o qual valeria muito mais que do os bens materiais, pois o homem não teria nascido para o repouso.

As vivências de Cândido e a negação da tese de Pangloss no fim do enredo podem ser colocados uma forte presença do empirismo de John Locke na construção do conhecimento humano nesta obra de Voltaire, um autor que dentro da perspectiva iluminista, criticava a plena aceitação dos dogmas religiosos e a ausência de uma busca mais racional nas pessoas de sua época, principalmente o povo, que estava imerso no fanatismo e não procurava sair de seus "respectivos melhores mundos" para experimentar e perceber os benefícios da Razão, já que viviam imersos na superstição. 



[1] VOLTAIRE - " Cândido ou o otimista" pág. 10
[2] Idem op. cit.  pág. 14
[3] LOCKE, John - " Ensaio acerca do Entendimento humano" capítulo XII , pág. 279
[4] VOLTAIRE - " Cândido" pág. 158

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