Editora Nova Alexandria, 1995.
Tradução de Marcos Araújo Bagno
Apresentação de Fábio de Souza Andrade
Retrato de Voltaire pintado por Maurice Quentin La Tour, c. 1736. Fonte: Wikipedia.org.en
Este pequeno exercício tem como objetivo analisar a obra "
Cândido" de Voltaire (1684-1778), buscando nesta, as influências de John
Locke (1603-1689) a partir de suas idéias contidas no " Ensaio acerca do
entendimento humano".
François Marie Arouet, conhecido pelo pseudônimo de Voltaire a partir de 1718, foi um filósofo extremamente crítico à Igreja e sua influência
na sociedade francesa como na Europa, celebrizado por sua frase: "Écrasez l'infâme!", ou seja,
esmagar a Infame , a Igreja. Quando escreveu "Cândido" em 1759, seu
intento era atacar o fanatismo religioso ainda muito presente naquele tempo,
tendo como pretexto ou mote as explicações obscurantistas dadas para o terremoto que arrasou
Lisboa em 1755, pois o clero católico insistia na visão de "castigo divino".
A crítica, no entanto, não se encontrava apenas à Igreja, mas também aos
pensamentos filosóficos de Leibniz (1646-1716) como também às idéias inatas de
Descartes (1596-1650), as quais já tinham sido refutadas por John Locke.
Leibniz é criticado a partir da sátira , pois as continuas desgraças de
Cândido e de seu mestre Pangloss (o maior filósofo e metafísico da Alemanha,
alusão direta de Voltaire a Leibniz) são uma manifestação caricatural do
otimismo desmedido do filósofo alemão. Quanto a Locke, Voltaire sofreu uma
forte influência do pensamento inglês (referia-se a Inglaterra como a
"ilha da Razão" e ali vivera exilado entre 1726 e 1728), pois as aventuras de Cândido pelo mundo e sua
incessante visão de que o castelo onde nasceu na Vestfália era "o melhor
dos mundos possíveis" representam a contraposição entre o conhecimento
dogmatizado (Cândido assim acreditava apenas por ouvir seu mestre Pangloss e crer
na sua plena certeza, sem contestá-lo) e a prática sensorial (segundo o
pensamento de Locke, o conhecimento se dá a partir da experiência e da
reflexão).
"Cândido" , assim como outras obras literárias de Voltaire,
apresenta uma estrutura de obra de tese (proposição, desenvolvimento e
conclusão) dotadas de um estilo leve e despojado, com um enredo fantástico
repleto de aventuras e peripécias de seus personagens, as quais são
inverossímeis , passando ao leitor uma impressão de estar assistindo uma peça de
teatro de marionetes, pois o narrador conduz os personagens conforme bem
entende.
Cândido era um rapaz muito tranquilo (filho bastardo de uma irmã do barão
Thunder- ten-tronckh, um poderoso nobre da Vestfália, região ocidental da Alemanha, junto à fronteira da
França) que foi educado nos melhores costumes, sendo dotado de uma boa índole e
muita vivacidade. Teve como seu preceptor, Pangloss, um metafísico e filósofo
que:" provava admiravelmente que não há efeito sem causa e que , neste
mundo, o melhor dos mundos possíveis, o castelo do barão era o melhor de todos
os castelos e a senhora do senhor barão
a melhor de todas as baronesas."[1]
No entanto, o jovem Cândido se
apaixonou pela filha do barão, Cunegundes, sendo flagrado pelo barão quando a beijava. Devido
a falta cometida, Cândido foi expulso a pontapés do castelo do barão e
encontrou-se só no mundo. Voltaire, usou a imagem bíblica do "Pecado
Original" comparando Cândido com Adão, ambos foram expulsos do "Paraíso" devido a queda nas tentações femininas.
Solto no mundo, Cândido começa uma longa viagem repleta de acontecimentos
desfavoráveis, tentando a todo custo provar que o sábio Pangloss estava certo,
porque:" tudo vai pelo melhor possível"[2]
. Tais infortúnios de Cândido ao longo da narrativa constituem-se na experimentação que ele
deveria passar afim de comprovar sua visão de mundo, a qual derivava do
pensamento de seu preceptor.
Voltaire mostrou que Cândido em sua ingenuidade foi guiado pelo seu
desejo de reencontrar Cunegundes e nesse ínterim entender melhor o mundo,
sempre altivo, sempre seguro que tudo tinha uma causa e esta relação (causa e
efeito) regia as coisas. Cruzando a trajetória de Cândido com o pensamento de
Locke a respeito das hipóteses: "
Não devemos assumir nenhuma[ hipótese] muito precipitadamente ( que a
mente, que sempre penetraria nas causas
das coisas, e teria princípios para
apoiar, é bastante para fazê-lo) até que tenhamos examinado bem os pormenores e
feito vários experimentos, nesta coisa que explicaríamos por nossa hipótese, e
até verificarmos se isto de algum modo concorda com elas; se nossos princípios
nos levarem bem ao fim e não forem tão inconsistentes com um fenômeno da
natureza, como parecem tão acomodados a explicar outro , ao menos, tomemos o cuidado para que o nome princípios não nos
iluda, nem se imponha a nós por fazer-nos receber isto como uma verdade
inquestionável, que é, no melhor dos casos, muito duvidosa conjectura; tais são
a maioria( quase disse todas) das hipóteses na filosofia natural."[3]
A discussão de Locke gira em torno da questão da elaboração de hipóteses
coerentes e de sua conseqüente experimentação para a construção do
conhecimento, não acatando qualquer " princípio" em definitivo e
mesmo que tenho sido provado, que este não se torne um dogma . Tal fato, vai ao encontro da perspectiva de Voltaire, o
qual questiona o fanatismo e a exacerbada manutenção dos dogmas da Igreja, pois
as ações de Cândido ocorrem sem reflexão, pois o mundo era conforme Pangloss
dizia.
A aceitação pura e simples de Cândido, aos poucos se transforma no
despojamento dos preconceitos, dando espaço ao aprendizado a partir de sua
relação com o mundo. Uma relação própria com o mundo e bem diferente da
"redoma" do castelo em que vivia na Vestfália , constituindo uma
visão positiva da Natureza, não concebendo-a como uma desordem constante
repleta de infelicidades, mas de um processo rico de aprendizado.
Um dos principais motivos dos infortúnios de Cândido foi as gigantescas
riquezas que trouxera do El Dorado, o lendário país das riquezas infinitas, pois
somente um indivíduo puro como Cândido poderia encontrá-lo. Tais riquezas que
trouxera foram responsáveis pelo despertar da cobiça dos homens , os quais se
propunham a ajuda-lo, mas sempre querendo lucrar muito ou mesmo enganá-lo,
aproveitando-se de sua ingenuidade.
Cândido caiu em desgraça com o barão devido ao seu amor por Cunegundes e
este foi o motivo que guiou toda sua trajetória, a idéia de reencontrar sua
amada e ser feliz. Todavia, ao longo da busca descobre que sua amada fora
vítima das mais bárbaras violências, havia se tornado escrava sexual (Voltaire
aproveita esta circunstância para criticar a devassidão de alguns membros da
Igreja, entre eles o próprio papa) e já não era tão bela quanto fora em sua
juventude.
Na definição do próprio Cândido, o otimismo é dizer que "tudo está
bem, quando tudo vai mal" , mas esta chama o guiou até seu intento, quando
reencontra Cunegundes já não era tão bela e formosa, encontrava-se pobre, numa
vida extremamente infeliz e mesmo nestas condições quis ficar com ela. Naquela
altura, Cândido já havia perdido a maior parte de sua fortuna e só lhe restara
o casebre que morava com Cunegundes, a
velha criada, Pangloss, Martinho e Cacambo.
Final feliz? Não , estas
circunstâncias não trouxeram toda paz e harmonia:" A mulher dele , tornando-se todos os dias mais feia, fez-se
rabugenta e insuportável; a velha adoeceu e tornou-se ainda pior de gênio que Cunegundes;
Cacambo que trabalhava no jardim, e ia
vender legumes a Constantinopla, via-se carregado de trabalho e amaldiçoava seu
destino; Pangloss sentia-se desesperado por não brilhar em alguma Universidade
da Alemanha; quanto a Martinho, estava firmemente persuadido de que se está mal
em toda parte; recebia as coisas com paciência." [4]
A
visão de Cândido ao fim da história se altera, pois suas “aventuras” lhe
trouxeram uma perspectiva diferente, já que travara contato com o mundo real e
assim pode constatar que o mundo não era tão perfeito e pode ver que sue
mestre, Pangloss, também já não acreditava nesta fórmula de viver (Tudo está
sempre bem, mesmo estando mal). O desfecho da história, não é uma visão de
pessimismo violento, porém mostra a necessidade de uma maior reflexão sobre as
experiências, deixando de depositar todos os desígnios na Providência Divina.
Voltaire, crê numa Entidade Superior aos homens, mas que não se contradiz
com o pensamento racional, valorizando portanto, a inquietação e a reflexão
humana. Cândido, termina com uma pequena casa, uma mulher e alguns amigos e
conversando com um sábio árabe, este lhe revela o que seria vital: o trabalho,
o qual valeria muito mais que do os bens materiais, pois o homem não teria
nascido para o repouso.
As vivências de Cândido e a negação da tese de Pangloss no fim do enredo
podem ser colocados uma forte presença do empirismo de John Locke na construção
do conhecimento humano nesta obra de Voltaire, um autor que dentro da
perspectiva iluminista, criticava a plena aceitação dos dogmas religiosos e a
ausência de uma busca mais racional nas pessoas de sua época, principalmente o
povo, que estava imerso no fanatismo e não procurava sair de seus "respectivos
melhores mundos" para experimentar e perceber os benefícios da Razão, já
que viviam imersos na superstição.
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