Onipresente, onisciente e onipotente são os atributos
daquele que, para os judeus, é “O” responsável por tudo e por todos no Universo.
Criador de todas as coisas, fez o homem a sua imagem e semelhança, mas não
permitiu a sua criatura que lhe venerasse em imagem, qualquer que fosse, dessa
forma, seu louvor se daria exclusivamente pela palavra e pelos rituais que ela
prescreve, tendo portanto, o “Povo escolhido” uma severa disciplina a seguir,
distinguindo-se dos demais povos ao seu redor. Estes últimos fixavam em imagens
pintadas ou esculpidas, as inúmeras manifestações de seu universo sagrado que
era muito mais plural e rico em variedade, não concebido dentro de parâmetros
antagônicos (salvação/danação; Paraíso/Inferno), mas sim na ideia da existência
de um transitus, quer dizer, de uma
passagem deste mundo visível para um “Além”.
Yaweh escolhera seu povo e lhes prometera uma terra em troca
de fidelidade, celebrando uma aliança, marcada com o sangue da circuncisão a
partir de Abraão e sua descendência e confirmada com Moisés através da entrega
do Decálogo, que logo no seu início diz a Moisés e seu povo: “Não farás para ti
imagem esculpida de nada que se assemelhe ao que existe lá em cima nos céus, ou
embaixo na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra.”
Dentro da trajetória humana, aos olhos da tradição
judaico-cristã, a questão da similitude com Deus é vital para a compreensão do
papel da imagem dentro da articulação das práticas religiosas do judaísmo e do
cristianismo.
A partir da ação deste em “moldar” o Éden e a Humanidade,
impondo-lhes obediência, que uma vez quebrada pelo “Pecado Original”, gerando a
punição das criaturas, fizeram com que ocorresse a perda.
Segundo o teólogo Urbano Zilles, professor titular da
PUC-RS, “o culto é endereçado não às imagens em si, mas ao próprio Deus, à
Santíssima Virgem e aos Santos. O culto das imagens é, portanto, relativo. Diz
S. Basílio que ‘a honra prestada a uma imagem se dirige ao modelo original’
(Spir 18, 45) e o Concílio de Nicéia (787) diz que ‘quem venera uma imagem,
venera nela a pessoa que nela está pintada’ (DS 601).
Por outro lado, os que rejeitam a veneração de imagens sempre apelam a textos
do Antigo Testamento. Geralmente só citam Ex 20, 4-5 e Dt 5, 8-9). Não trouxe o
Novo Testamento grandes novidades? São esses os únicos textos pertinentes do
Antigo Testamento?
É tão certo que a proibição desses textos se refere às
imagens de Javé ou às imagens pagãs ou apenas aos cultos dos cananeus? O que,
então, significa o texto de Ex 25, 17-22 e outros?”
Zilles recupera a contradição do Velho Testamento, pois “o texto de Ex 25,
17-22 diz: ‘Farás também um propiciatório de ouro puro. Farás dois querubins de
ouro polido, nas duas extremidades do propiciatório: um de um lado e outro de
outro lado, de modo que os querubins estejam nos dois extremos do
propiciatório. Os querubins, com as asas estendidas por cima, estão encobrindo
o propiciatório, um em frente do outro, voltados para o propiciatório. Porás o
propiciatório sobre a arca, e dentro da arca o documento da aliança que te
darei. Ali me encontrarei contigo, e de cima do propiciatório, do meio dos dois
querubins colocados sobre a arca da aliança, eu te comunicarei tudo o que
ordenar aos israelitas’. Não é esta também a palavra de Javé? Ou também se quer
manipular a Sagrada Escritura de acordo com ideologias do momento?’.
O cristianismo enquanto doutrina surgiu no seio do Império
Romano , sendo tratado como uma seita perigosa, religião de escravos e de
provocadores que não aceitavam o poder imperial e sua divindade. Foram três
séculos de perseguições, provocando a morte de milhares de pessoas, além da
perda de bens, exílios e outros problemas.
Mesmo com as perseguições, o
cristianismo não deixou de crescer num processo que começou na base da
sociedade romana e gradativamente foi atingindo os mais diferentes grupos
sociais. Muitos se diziam praticante do culto aos deuses romanos e ao
imperador, mas secretamente em suas casas ou na escuridão das catacumbas
(cemitérios subterrâneos) realizavam o culto cristão, procurando escapar dos
massacres, crucificações, das arenas para serem queimados vivos ou devorados
pelos leões.
Trezentos anos de perseguição se
seguiram entre a morte de Jesus e a liberdade de culto concedida pelo imperador
romano Constantino (imagem abaixo) com o Édito de Milão no ano de 313, pois os seguidores de
Jesus eram vistos como uma ameaça ao Império já que negavam a divindade do
imperador e os deuses e se colocavam como seguidores daquele que se apresentou
como filho do único Deus.
Ao longo do século IV, o
movimento de difusão do cristianismo foi cada vez maior e sem o temor das
perseguições e com a proteção dos imperadores, seja na manutenção da liberdade
de culto, seja nas doações para a construção dos primeiros santuários. No ano
de 391, o imperador romano Teodósio através do Édito de Tessalônica estabeleceu
o Cristianismo como religião oficial de todo o Império Romano e tornou proibido
o culto aos deuses de outros povos sob a ameaça de prisão e confisco de bens.
Na continuação da análise do cristianismo,
Urbano Zilles, aponta que “já no Antigo Testamento a proibição de fazer imagens
não era algo tão absoluto como pregadores fundamentalistas pretendem. Há,
outrossim, textos que mostram que o próprio Senhor mandou fazer imagens para
manter a piedade de Israel. Assim, no mesmo livro do Êxodo, também lemos, como
vimos acima, que o Senhor mandou Moisés colocar dois querubins de ouro sobre o
propiciatório da arca; era pelo propiciatório assim configurado que Javé falava
ao seu povo. Por isso a Bíblia costuma dizer que ‘Javé está sentado sobre os
querubins’ (Ex 25, 17-22). Caberia conferir, nesse sentido, outros textos como
1Rs6, 23-28; Nm 21, 4-9; etc.
Nem todos os judeus interpretaram a proibição do Êxodo e do Deuteronômio como
absoluta, porque também introduziram o uso de imagens nas sinagogas, como
mostram os numerosos afrescos e mosaicos nas sinagogas de Bet-Alfa, Gérasa,
Naara e a famosa sinagoga de Dura-Europos, na Babilônia, na qual Moisés foi
representado frente à sarça ardente, o sacrifício de Abraão, etc., e túmulos
judaicos em Roma, ornados com representações de animais e homens.
No Novo Testamento só é proibido venerar imagens dos deuses pagãos (1Tes 1, 9;
1Cor 5, 10). As mais antigas catacumbas romanas já eram enfeitadas com
representações cristãs, com muitos elementos derivados da arte profana dos
pagãos.
A sinagoga de Dura-Europos, séc. III d.C, Síria.
Nem o Antigo nem o Novo Testamento, bem entendidos, proíbem a arte, a produção
de imagens profanas. A imagem religiosa encontrava resistência não só em vista
do perigo da idolatria. Eusébio de Cesaréia se opôs ao pedido de Constantino de
ter uma imagem de Cristo, dizendo ser impossível representar com cores mortas e
sem vida este Jesus que já na terra era irradiação da glória divina (PG 20,
1545). Gregório Magno repele a adoração das imagens, mas aceita seu uso
pedagógico: "O que para os leitores a escrita é, para os olhos dos
não-instruídos, é a imagem, pois até os ignorantes vêem nela o que devem
imitar, lendo nela inclusive os que não sabem ler" (Ep 11, 13). Em outros
termos, a imagem adquire valor complementar ao da palavra e dos sacramentos.
O cristianismo primeiro evitou, em geral, o culto das imagens por causa do
perigo da idolatria. Mas cedo introduziu imagens como adorno e ilustrações,
passando depois ao seu culto, sobretudo no Oriente. Aparecem, então, símbolos e
figuras decorativas que lembram os mistérios da salvação em torno da pessoa de
Jesus e dos apóstolos. Em pinturas e esculturas, artistas passaram a
representar as imagens de Cristo: Jesus como pastor, Jesus como pescador com
seus apóstolos ou Jesus nos diversos relatos evangélicos. As imagens passaram a
recordar a imagem original.
Nos séculos IV e V, com o apoio da hierarquia, desenvolveu-se uma iconografia
gigantesca, inspirando-se ora no Antigo Testamento, ora no Novo Testamento.
Salientou-se o Cristo Pantocrator, a Virgem e os Santos no fundo das ábsides
basilicais. No Oriente bizantino, desenvolveu-se a iconografia com excepcional
exuberância.
O culto das imagens exerce grande importância no rito bizantino como entre os
cristãos ortodoxos em geral. A grade que fecha o santuário, chamada iconostase,
é ornada de imagens. Trata-se de uma reação contra a iconoclastia dos séculos
VIII e IX.
Iconostase de Santa Helena e Constantino, Bruges, Bélgica
A Igreja do Ocidente aceita as imagens nos lugares de culto. Enquanto os calvinistas
as rejeitam por contrariarem a Bíblia e alimentarem o perigo da idolatria, os
luteranos mais recentemente defendem que o mandato de Cristo aos discípulos de
pregar o Evangelho em todas as línguas inclui também o uso da linguagem
figurada do artista (pintor ou escultor). Lembram que a Bíblia se serviu de
imagens, palavras de sentido metafórico, para expressar verdades divinas. Os
luteranos alemães afirmam que quem, como Lutero, reconhece na música o veículo
apto da fé e do amor dos cristãos, não pode deixar de reconhecer também nas
representações visuais um instrumento apto para proclamar a verdade revelada.
Calvinistas retirando as imagens e destruindo vitrais de uma antiga igreja católica que passou para o seu controle.
Os ícones ocupam um lugar
importante nos países de cristãos ortodoxos. Não só povoam os templos.
Encontram-se ao longo das estradas, nos cruzamentos, nos pórticos de entrada
dos povoados. Nas residências, o ícone com uma lamparina assemelha-se a um
santuário familiar. Em cada residência o ícone ocupa lugar de honra, na
entrada, para ser o primeiro a acolher o visitante.
O ícone acompanha o fiel durante toda a vida. Recebe um ícone ao ser batizado e
outro no casamento. Com ele os pais benzem o filho, quando parte em viagem, os
circunstantes, e os moribundos.
Para os cristãos ortodoxos, o ícone por excelência é o rosto de Cristo, cujo primeiro
modelo não foi fabricado por mão humana (acheiropoietes
em grego, portanto daí, a imagem aqueropita), pintado em pano pelo próprio
Cristo, segundo a lenda, que o teria enviado a Abgar, rei de Edessa, e aí teria
ficado escondido durante muito tempo. É uma tradição oriental que corresponde
ao Santo Sudário (síndone) que hoje
se guarda na catedral de Turim.
Cristo Pantocrator (Todo Poderoso), c. séc. XII, catedral de Cefalú, Sicília, Itália
A face humana de Deus "é imagem (eikôn) do Deus invisível" (Cl 1, 15), sua humanidade é o
"visível do invisível". Quando o Verbo se fez carne, tornou-se
necessário o ícone, que representa Cristo e os santos quase sempre
frontalmente, tornando-o transparente, pois conduz do visível de Cristo ao
invisível do Espírito. O ícone ensina-nos a descobrir em cada homem a imagem de
Deus, pois é uma arte transfigurativa.
Num ícone a luz não parte de um foco concreto. Os pintores fazem a luz irradiar
do próprio fundo do mesmo. O corpo e as vestes são iluminadas com finos traços
de ouro. Os animais, as plantas e as paisagens são estilizadas segundo sua
essência espiritual. A obra de arte geralmente é abençoada durante a celebração
eucarística.
Para os cristãos orientais, a contemplação das imagens de Cristo, da Virgem e
dos santos, não têm apenas valor didático ou comemorativo dos mistérios da
Salvação, nem se satisfaz com estimular a devoção. Os ícones possuem valor
dogmático verdadeiro e específico, ocupando lugar de destaque na economia
eclesial. Diz o Concílio de Constantinopla, em 843: "A arte sagrada do
ícone não foi inventada pelos artistas. É instituição que vem dos Santos Padres
e da tradição da Igreja".
Para os orientais, o iconoclasmo peca por docetismo (do
grego dokeo “para parecer” que
entendia que o corpo de Cristo era uma ilusão e que sua crucificação foi apenas
aparente), pois não sabe reconhecer a epifania do invisível; mostra-se
insensível ao sagrado na história; nega que a santidade seja capaz de
transfigurar a natureza. Dessa maneira, atacar os ícones é atacar o estado
monástico, o culto dos santos, a própria maternidade de Maria e, em última
instância, negar a encarnação de Cristo.
ícone russo da Virgem Hodighítria: "Aquela que aponta o caminho", onde vemos a mão esquerda de Maria apontar para seu filho Jesus, pois ele é o "caminho da Salvação".
O ícone, na liturgia bizantina, faz com que a visão adquira certa primazia
sobre a palavra, já que capta o elemento sensível do Verbo encarnado, sob a
forma espiritual e impregnada de santidade, que nos é oferecida pela força do Espírito
Santo. Não substitui os sacramentos, mas, de certo modo, permite-nos já agora
perceber a glória final, revelando-nos a beleza do reino celestial. O
iconógrafo, por isso, deve preparar-se, para a pintura, com orações e jejuns,
com ascese e santidade, pois o ícone é feito para contemplação sensível da
divindade invisível e santa. Através da percepção da santidade, que transparece
na forma sensível, nós ficamos santificados pela força do Espírito Santo.
Enquanto a iconografia oriental sempre indica a unidade entre o divino e o
humano, a arte ocidental prefere acentuar a diferença.
Ícones são, para os cristãos orientais, mais que
simples exercícios estéticos ou meros instrumentos pedagógicos para a educação
do povo simples. Para a compreensão ortodoxa, os ícones são, ao lado da
proclamação da Palavra e da celebração da Eucaristia, algo como sacramentais,
ou seja, uma forma singular da comunicação do crente com Deus.
Para concluir, é ignorância afirmar que os católicos "adoram"
imagens, como é ignorância afirmar que no Antigo Testamento há proibição
absoluta do uso de imagens. Os católicos veneram os santos e imagens,
tributando culto àqueles que são representados pelas imagens; reconhecem que o
Livro do Êxodo proíbe aos judeus a confecção de imagens, porque poderiam
oportunizar a que Israel as adorasse como faziam os povos vizinhos. Mas os
católicos não se prendem fanaticamente a textos isolados por sua escolha. Sabem
que já no Antigo Testamento o Senhor mesmo mandou confeccionar imagens para
sustentar a piedade de Israel. No Novo Testamento, pelo mistério da encarnação,
o próprio se dirige aos homens por meio da figura humana de Jesus. Este ilustra
realidades invisíveis, através das imagens inspiradas pelas coisas visíveis:
parábolas e alegorias.
Capela de "Notre-Dame du Pilier", catedral de Chartres, França. Crédito: Elias Feitosa
Vale citar a palavra de S. João Damasceno: "A beleza e a cor das imagens
estimulam a minha oração. É uma festa para os meus olhos, tanto quanto o
espetáculo do campo estimula meu coração a dar glória a Deus". Ensina o
Catecismo da Igreja Católica: "A contemplação dos ícones santos, associada
à meditação da Palavra de Deus ao canto dos hinos litúrgicos, entra na harmonia
dos sinais da celebração, para que o mistério celebrado se grave na memória do
coração e se exprima em seguida na vida nova dos fiéis" (PG 1162).
Portanto, venerar imagens não contraria o Decálogo do Antigo Testamento e muito
menos o Evangelho de Jesus Cristo. A agressão grotesca às imagens sagradas, como alguns pastores tem estimulado em diferentes partes do Brasil, mostra não só desconhecimento da Bíblia como um todo e da história do
cristianismo, mas desconhece os fundamentos antropológicos da comunicação
humana com o divino.
Se o culto às imagens, às vezes, degenerar em idolatria, não se pode concluir
daí que sempre, ou na maioria das vezes o deverá ser, da mesma maneira que, do
fato de um pastor agredir a sensibilidade dos fiéis de outra Igreja, não se
pode concluir que esta deva sempre ser a atitude de todos os pastores em
relação aos fiéis de outras Igrejas.
O bispo Sérgio von Helder, da Igreja Universal do Reino de Deus, agredindo uma imagem de N. S de Aparecida, em cadeia nacional, durante programa de televisão em 1995.
Ataque à Igreja de N. S. do Carmo, ocorrido em 2014, na cidade de Sacramento, Minas Gerais.
Ataque à Igreja de Santo Afonso, em Carrapateira, Paraíba. 2015.
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