Sabemos da existência de importantes cultos dedicados às
deusas dentro do Império romano, como por exemplo, as deusas Vênus, Ártemis,
Demeter, Ísis e outras em diferentes locais e que de certa forma, foram aos
poucos mesclados e assimilados pelo cristianismo, não de uma forma unilateral,
aculturada, mas como uma referência básica que colocou lado a lado, as velhas
crenças dos diferentes povos (paganus)
e o crescente cristianismo que se organizou nos primeiros séculos do primeiro
milênio.
Nesse contexto, as festas cristãs foram também adaptadas
de acordo com o calendário cristão, servindo como referência para a conversão e
organização da religiosidade de diferentes partes do império.
O culto mariano se formalizou com o Concílio de Éfeso em
431 a partir da instituição do dogma da maternidade divina: a Theotókos, cujo significado literal
seria “Geradora de Deus”. Em 451 durante o Concílio de Calcedônia ocorreu não
só a ratificação das decisões de Éfeso, mas também o combate ao monofisismo,
considerado naquele contexto uma heresia.
Theotókos, c. Séc. IX - Monte Athos, Grécia
Fonte: Portal Ecclesia
O
primeiro a ser tratado é o conceito de devoção, palavra de origem latina (devovere) que significa entregar-se
incondicionalmente, consagrar a vida a algo e no caso de nosso trabalho,
tratamos da devoção à Virgem Maria, institucionalização perpassa o início da
era cristã e se consolida ao longo do medievo e atinge os tempos atuais,
podendo ser compreendida como um fenômeno de longa duração.
Qual
seria o status conferido a Maria na organização da doutrina cristã?
De acordo
com a interpretação da ortodoxia, toda a devoção à Maria está relacionada com o
Cristo, não havendo possibilidade de uma posição independente, mas tal
circunstância esbarra no confuso espaço entre a teologia estabelecida pela
Igreja e o entendimento da mesma pelos fiéis. Para a ortodoxia, somente a Deus
se deve destinar a “adoração” (latreia)
e que à Virgem e aos santos estava destinada a “veneração” (proskynesis). No entanto, esta
terminologia percorreu um vasto e complexo percurso dentro da história do
cristianismo, pois sua significação foi responsável pelos movimentos
iconoclastas da cristandade oriental e concomitantemente, ao distanciamento
entre os cristãos orientais e católicos romanos e posteriormente, dos
protestantes.
Resultado
de diferentes formas de exegese, a relação dos cristãos com as imagens foi bem
diversa, havendo também uma outra variante a ser pensada: o movimento de estabilização
e ascensão do Cristianismo foi contemporâneo à decadência e desestabilização do
Império Romano Ocidental nos séculos IV e V.
Dessa
maneira, podemos observar, a partir deste momento, uma série de influências
entre ambas as culturas (cristã e romana), uma vez que a primeira ascende e a segunda
declina em algumas partes do Império Ocidental, porém não desaparece, fundindo-se,
amalgamando-se e cristianizando-se gradativamente.
Dentro do
mundo romano, a imagem (imago)
detinha uma ampla presença e aceitação, referenciada pelo conceito da mimesis e assim, participava do
cotidiano de todos nas mais diferenciadas circunstâncias: a estátua do
imperador, as imagens dos deuses, os retratos ou estátuas dos antepassados,
enfim, aos olhos cristãos um pecado imperdoável, mas que no mundo romano não
encontrava censura.
Herança
judaica, somada aos temores de uma cultura idólatra como foi a romana, todo e
qualquer elemento que pudesse ser uma ameaça aos ensinamentos de Jesus eram
motivo para desconfianças e críticas, mesmo se tratando por exemplo da Mãe de
Jesus ou mais gravemente ainda, de outros personagens do cristianismo.
Estrutura do vitral da Glorificação da Virgem
Fonte: Corpus Vitrearum France
O vitral dedicado à Glorificação da Virgem apresenta o reinado conjunto de
Maria e de Jesus e foi construído num jogo de oposição entre o plano terrestre
(representado no interior dos círculos) e o plano celeste (representados nos
quadrilóbulos) que se alternam no sentido ascendente e culminam com a coroação
da Virgem.
Parte inferior do vitral da Glorificação da Virgem (cenas 1 a 14)
Crédito: Elias Feitosa
Este vitral foi uma doação dos sapateiros (cenas 1 a
5) que são representados no exercício de seu ofício: a compra do couro, o corte
, a costura do sapato e por fim, a venda.
A temática deste vitral tem suas raízes na tradição
cristã oriental (bizantinos, sírios, armênios e caldeus), sendo uma festa que
honra a Mãe de Deus que concluiu sua peregrinação terrena e sua alma é recebida
por Jesus, sendo denominada como Dormição da Virgem, numa alusão ao corpo que
jaz no leito e é pranteado por duas mulheres (cenas 6 e 8) e pelos apóstolos,
reunidos miraculosamente pelos anjos e assim poderiam assistir a Virgem em seus
momentos finais (cena 07).
Parte superior do vitral da Glorificação da Virgem (cenas 15 a 27)
Crédito: Elias Feitosa
A comoção se faz presente pela postura e gestos dos
apóstolos: lágrimas enxugadas com uma parte das vestes, um olhar desviado, uma
cabeça presa pelas mãos ou um semblante tenso, marcado pelas sobrancelhas enrugadas.
Um outro aspecto é a composição da cena, a qual
apresenta uma estrutura piramidal marcada pelo corpo da Virgem estendido no
leito e os apóstolos que a cercam compondo os outros dois vértices.
A cena deste primeiro círculo é contraposta ao
primeiro quadrilóbulo, no qual Cristo recebe a alma de sua mãe, apresentada
como um pequeno corpo nu (cena 10), momento este denominado como elevação da
alma.
Na sequência, temos um outro círculo que retrata a
condução do ataúde pelos apóstolos (cenas 12 a 17) com o corpo da Virgem para o
sepultamento, cerimônia interpretada durante o medievo como uma ação simbólica
do transporte da Arca da Aliança para Jerusalém. Este episódio nos permite
apontar a idéia da incorruptibilidade do corpo da Virgem e tal fato acaba por
se confirmar com sua deposição no sepulcro (cenas 18 a 20) e a consequente
retirada pelos anjos (cenas 21 a 23).
A distinção entre as duas assunções (do corpo e da
alma) foi fruto de um vasto debate teológico com diferentes interpretações no
contexto da execução deste vitral, havendo portanto, o interesse de distinguir
claramente a Elevação da alma num primeiro momento e a Assunção do corpo,
representado dentro de uma mandorla, envolto num manto de glória pelas mãos dos
anjos, correspondendo às representações iconográficas da Ascensão de Cristo.
No topo da baia a conclusão da narrativa com a
Coroação da Virgem, a qual divide o mesmo trono com Cristo e deste recebe o
triunfo: sentada à direita, tendo numa mão o cetro e a outra em saudação
voltada para Jesus, de quem recebe a coroa, a qual é sobrevoada por uma pomba e
dela emana uma luz vermelha como uma referência direta ao Espírito Santo.
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