domingo, 1 de junho de 2014

Do mundo pagão ao mundo cristão

"Vênus de Willendorf" 11,1 cm - c. 24.000-22.000 a. C.
Encontrada em Willendorf, Áustria

Anteriormente à existência do cristianismo, vários povos em diferentes partes do globo cultuavam divindades femininas e dispunham de inúmeras narrativas escritas ou orais sobre as Deusas-Mães ou sobre a Mãe Terra: fonte de vida, provedora dos alimentos, da existência e portanto, um elemento central nas concepções religiosas ou mesmo na elaboração de respostas para a existência do universo e do próprio homem. 

A "Vênus de Willendorf" pode ser um bom exemplo, pois trata-se de um objeto feito no período Paleolítico, no qual encontramos diferentes formas de expressão humana presentes em pinturas rupestres e em artefatos como esta generosa deusa da Terra, representada dentro dos atributos que lhe conferem sua importância: corpo grande, com ancas largas e fecundos seios que são a expressão de sua potência, além da visível genitália, ponto de concepção e de saída da vida para o mundo.

No entanto, não sabemos como nossos ancestrais a chamavam, mas quando foi encontrada em 1908, foi denominada "Vênus", justamente pela questão da fecundidade e que ao mesmo tempo contrasta com aquilo (corpo esguio, riqueza de detalhes) que os gregos e romanos representariam de sua "deusa" e que seriam em certa medida, marcante para a reflexão sobre os padrões de arte e de beleza ao longo de vários séculos:


"Vênus de Milo" -séc. III a.C. Museu do Louvre, Paris - França.
Crédito: Elias Feitosa


"Vênus ou Afrodite"- Séc. V a.C. - Museu Britânico, Londres, Inglaterra.
Crédito: Elias Feitosa



Com o advento do cristianismo, seu crescimento e ascensão dentro do mundo romano até tornar-se a religião do próprio Império em 391 com o Édito de Tessalônica,  o culto dos povos indo-europeus (divindades agrícolas ou mesmo o panteão romano) que cultuavam passou a sofrer as influências da pregação cristã e ao longo de vários séculos foi sendo modificado pela ação de pregadores, padres com o intuito de levar a “Verdadeira Fé”.

A evangelização destes povos chamados de pagãos (paganus: camponês em latim) foi gradativa, lenta e matizada em diferentes regiões pelos mais diversos agentes (padres, bispos agindo formalmente com suas pregações da palavra de Deus ou pela “interseção divina” descrita nas inúmeras hagiografias, as quais  forneciam modelos de conduta moral (exemplum) para os fiéis . Tal processo proporcionou uma sobreposição ou fusão de elementos culturais e religiosos como festas, calendários e locais de culto.


Esquema da basílica de san Clemente em Roma: no séc. I era um templo dedicado a Mitra (deus solar persa), depois no séc. IV foi aterrado para a construção da basílica dedicada a San Clemente, que fora destruída num ataque a cidade em 1084 por piratas normandos e depois no século XII, reconstruída sobre a estrutura anterior.

Templos, fontes, pedras, árvores e outros compunham o “espaço” sagrado das religiões pagãs. Para maior eficiência da doutrinação cristã, utilizou-se como procedimento a construção de templos dedicados a santos cristãos naqueles lugares, promovendo assim a sua “cristianização”. Nesse sentido, em antigos lugares de culto, nos quais se faziam oferendas ou sacrifícios para a “Mãe Terra”, foram erguidas igrejas e catedrais dedicadas ao culto da Virgem, a qual passou lentamente a ser respeitada e adorada como a Virgem, Mãe de Deus. Chartres é um destes casos, pois a igreja foi construída sobre uma fonte sagrada e tornou-se lugar para o culto de uma Virgem Negra, conhecida como Notre-Dame-Sous-Terre (Nossa Senhora Subterrânea).




Outro dado importante a respeito da catedral de Chartres, além da Virgem Negra é o fato da presença de uma relíquia, o véu que teria pertencido a Virgem Maria, elemento de veneração e piedade que movimentava milhares de peregrinos em busca de alívios para as dores do mundo e o perdão de seus pecados, fazendo de Chartres um importante centro do culto mariano, assim como um dos pontos que ligavam a região do Eure-Loire com o caminho de Santiago de Compostela.


fachada ocidental da Catedral de Notre-Dame de Chartres - séc. XII
crédito: Elias Feitosa


A reverência de Maria como a Mãe de Deus tornou-se o elemento central para a compreensão de seu papel no universo humano: Maria foi a virgem escolhida por Deus para trazer ao Mundo a Salvação, ou seja, ela que concebeu sem pecado daria a Luz ao Filho de Deus, o Messias .

A Virgem Maria, portanto, representa dentro da tradição católica, um dos elementos de ligação entre o plano divino e o plano material. Ela trouxe em seu ventre o filho de Deus e este tinha como missão mostrar aos homens o caminho da Salvação, o qual não era mais a Lei de Moisés. Pode-se entender Maria como um “relicário divino”, isto é, da mesma forma que a Arca da Aliança guardou as tábuas da Lei durante o Êxodo e depois no templo de Jerusalém, Maria teve dentro de si o Filho de Deus e dele viria a Salvação, a qual estava presente nos Evangelhos.

O florescimento do culto mariano esteve intimamente ligado com a Reforma Gregoriana perpetrada pelo papa Gregório VII, que estabeleceu uma relação entre Maria e a Igreja (Mater Ecclesia), buscando uma imagem de uma doutrina que recordava suas origens e ao mesmo tempo, reforçava a concepção de uma imagem de um poder soberano da instituição. Outro ponto a ser considerado, é a mudança dos valores referentes à imagem feminina, pois enquanto Eva fora a representação do Pecado original, seduzida pela serpente e junto com Adão, ambos desobedientes a Deus; Maria, seria a partir de então, a intercessora  dos homens perante Deus.

Destacamos, no entanto, que estes dois movimentos ocorreram num processo extenso e concomitante dentro da Cristandade, a qual se expandiu e gradativamente assumiu uma posição de hegemônica. Dessa forma, a imagem da Virgem Maria teria adquirido uma importância capital, sendo um exemplum (modelo) para os fiéis, tanto na vida religiosa como no cotidiano secular.

Ao observar a elaboração de uma doutrina sobre o papel da Virgem Maria devemos compreendê-la também como um movimento intrínseco à expansão da cristandade e suas prováveis raízes estariam no início da Era Cristã, tendo uma primeira referência na interpretação do Novo Testamento.

Dois pontos se tornam centrais para a compreensão da importância crescente da figura de Maria ao longo do medievo: a interpretação paulina sobre a mensagem do Cristo e as primeiras representações iconográficas da Virgem.

A exaltação da pessoa de Maria se manifesta no texto de Paulo aos Gálatas (Gl 4, 4-5) como uma ação indireta, porém clara: “Mas quando veio o cumprimento do tempo, enviou Deus o seu Filho, feito de mulher, feito sujeito à lei, para reunir os que estavam sob a lei, afim de que recebêssemos a adoção de filhos”. Ainda no mesmo texto, Paulo (Gl 4, 22-23) enfatiza a diferença das duas Alianças: “Porque está escrito que Abraão teve dois filhos, um de mulher escrava outro de mulher livre. Mas o que nasceu da escrava , nasceu segundo a carne, e o que nasceu da livre, nasceu por promessa”.

A conclusão de Paulo na epistola ressalta o papel libertador de Jesus , sendo que esta liberdade estava condicionada às próprias características do cumprimento da Salvação, elevando o caráter espiritual do texto: a vinda do Messias e da Nova Aliança.


Detalhe da fachada ocidental de Notre-Dame de Chartres
crédito: Elias Feitosa



O primeiro dogma mariano diz respeito à Maternidade Divina e foi estabelecido pelo Concílio de Éfeso em 431. Definiu-se Maria como Mãe de Deus (Theotókos), decisão sustentada pela interpretação da passagem bíblica da Visitação, no Evangelho de Lucas (Lc 1:26-28) onde Isabel saúda Maria como “a mãe de seu Senhor”. Por outro lado, esse episódio é decorrente da Anunciação:

E, estando Isabel no sexto mês, foi enviado por Deus o anjo Gabriel a uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão que se chamava José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria. E entrando, pois o anjo onde ela estava, disse-lhe: ‘Salve, cheia de graça, o Senhor está contigo!’”.

Maria nesse caso é a mulher humilde, pura, sendo saudada como “cheia de graça”, seja pela concepção sublime e desprovida do concurso de um pai terreno, seja pelo destaque no caminho da salvação para a Humanidade.

Nesse intervalo de aproximadamente quatro séculos, o cristianismo não só conseguiu sobreviver às perseguições implacáveis de vários imperadores romanos, mas também se difundiu por quase todo Império Romano. Justamente nesse período de perseguições ocorreu o desenvolvimento de uma iconografia cristã, a qual trazia entre seus símbolos, os elementos relacionados com os milagres de Jesus: a vinha, o pão, o peixe pintados nas paredes de algumas catacumbas.




Entre os diversos motivos pintados, podemos destacar a figura do Cristo como o “Bom Pastor”, uma provável referência em relação às pinturas romanas presentes também nas catacumbas (imagem acima), representando Orfeu ou ainda outras cenas bucólicas que puderam, em certa medida, servir de modelo para uma iconografia cristã em formação.



Mosaico do Bom Pastor - Igreja de S.Vitale, Ravena - Itália - séc. V




Maria teria um de suas mais antigas representações nas paredes das catacumbas de Priscila, na Via Salaria Nova em Roma, datada por volta do século II da era Cristã. Maria é pintada como uma mulher vestida com um manto e véu, tendo em seus braços Jesus e junto dela, encontra-se um homem imberbe, vestindo uma toga e portando um pergaminho em sua mão, que poderia ser uma referência a um apóstolo ou profeta.

Catacumbas de Priscila - Via Salaria Nuova, Roma.
  

A orans (orante), uma figura feminina também se fazia presente nas catacumbas, apresentada em oração: em pé, de braços abertos e levantados num gesto de súplica.  Uma leitura possível deste gesto seria a alusão à prática da oração ou ainda uma representação da “alma” do morto sepultado. Posteriormente, entre os séculos II e V d. C., tanto na cristandade latina quanto oriental, surgiram imagens onde Maria se encontrava na posição de oração, como por exemplo, a Virgem do Sinal.

Devemos considerar que, dentre as fontes de referência para a construção de uma iconografia mariana, estavam presentes as deusas da Terra, Deusas-Mãe que constituíam o panteão greco-romano e de vários povos pertencentes ao Império Romano , como por exemplo, Ceres, Cibele, Démeter, Vênus, Ártemis entre outras.

Deusa Cibele, Museu Nacional Arqueológico de Nápoles.
Crédito: Elias Feitosa 



A arte cristã teve desde seu início uma proposta pedagógica, ou seja, sua preocupação estava na transmissão dos ensinamentos da palavra de Deus pela forma de imagens, as quais davam forma à crença, não havendo portanto uma busca pela mimeses, como era comum na produção artística greco-romana. Assim sendo, as representações cristãs poderiam ser entendidas como uma das  manifestações (posteriormente denominadas) conceituais, segundo a visão de Hilário Franco Jr. :"Conceitualmente, isto é, para a cultura erudita, imago era a realização de uma certa forma em uma certa matéria, termo aplicado nas discussões sobre a Trindade ou a Encarnação, porém não sobre temas artísticos. Contudo imago era também 'sonho', 'visão', forma que poderia ser pré ou pós-existente à sua materialização, ou mesmo independente desta. Por transmitir sempre uma ou mais informações, toda imagem era uma forma de arte (ars = saber, conhecimento) e dessa forma aquilo que chamamos de obra artística tinha para eles uma função acima de tudo pedagógica, não-estética".


"Virgem do Sinal" Galeria Tretiakov, Moscou - Rússia
C. Séc. XII


A compreensão da imagem como um elemento que tinha um papel pedagógico não pode ser visto como uma única possibilidade de função, pois muitas imagens (pinturas, esculturas, vitrais, relevos, mosaicos) eram dotadas de significativa complexidade e sofisticação e assim, poderiam talvez ficar fora da compreensão da população laica e não-alfabetizada e dessa forma, a localização da imagem dentro do espaço em que foi produzida e projetada, sua visibilidade e proporção, poderiam também estar ligadas a um projeto mais amplo, no qual integravam um conjunto que destinava se manifestar dentro da beleza material enaltecendo a beleza espiritual: o belo ornamenta o sagrado, evocando a grandeza da divindade, pois a arte teria também o objetivo de compor um conjunto que se destinaria aos olhos de Deus, segundo à tradição cristã.


Vital da Catedral de Notre-Dame de Chartres, França.
c. 1140-1145
Crédito: Elias Feitosa 

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