segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Resenha do filme "Êxodo: deuses e reis", direção de Ridley Scott (2014)

Literatura versus Cinema sempre renderam uma boa briga, porque nem todas as eventuais adaptações do texto para tela alcançam a unanimidade dos fãs de uma e outra linguagem. 

Basta conversar com os devotos de "Harry Potter" e de "O Senhor dos Anéis" que as diferenças de opinião se manifestam facilmente. Isso para não falar de outras dezenas de obras. 

Mas, se falarmos que o texto é o Pentateuco, o qual integra a Torá (livro sagrado do judaísmo), o Antigo Testamento da Bíblia para os cristãos e tem ligações com o Corão, livro sagrado do Islã?
A situação se complica bastante.

O filme “Êxodo: deuses e reis”, dirigido por Ridley Scott em 2014, não é o primeiro a tratar da famosa história de Moisés e a busca da Terra Prometida e nesse caso, no imaginário coletivo ainda sobrevivem as referências do clássico filme de 1956, dirigido por Cecil B. DeMille e protagonizado por Charlton Heston como Moisés e Yul Brynner  como Ramsés, assim sendo, a comparação e a expectativa seriam inevitáveis.



Ridley Scott tem um curriculum invejável, marcado por inúmeros sucessos de público e crítica, dotados de um elevado padrão de qualidade em diferentes frentes: a execução do filme, a escolha de bons roteiros, pesquisa histórica, efeitos especiais e elenco de alto nível. No entanto, este background todo não foi suficiente para segurar a má recepção, tanto dos laicos quanto dos religiosos.

Scott optou por não fazer um decalque do filme de DeMille, portanto, ao contar a sua história, o caminho foi fugir dos cânones  (do cinema e da fé), sabendo que o risco seria grande. Na verdade, não é uma novidade tal opção, pois em “Gladiador”(2000), Scott construiu uma poderosa ficção para contar a epopeia do general Maximus que de preferido do imperador Marco Aurélio torna-se inimigo do seu sucessor, Cômodo, que assassinara o pai para assumir o trono, ao saber do plano de Marco Aurélio para restaurar a República, sob o controle de Maximus.

Ciúmes, ganância e loucura temperados com ficção (Cômodo não matou Marco Aurélio; nunca houve um plano de restauração republicana em Roma e Maximus era um personagem fictício) que renderam um excelente resultado, pois renovou a produção de filmes épicos e estourou como um sucesso milionário.

Bem, ao lidar com Moisés, este formato de mesclar ficção e história tem fator de complexidade ampliada: Moisés é um personagem venerado por judeus, cristãos e muçulmanos (metade da Humanidade se somarmos as três crenças) e o texto sagrado tem para os religiosos a condição de “Verdade”, quer dizer, tudo aconteceu daquele modo. Já para os estudiosos laicos, as dúvidas são imensas, seja do personagem em si (a existência de Moisés e a atribuição da autoria do Pentateuco), como dos fatos citados (condição dos hebreus no Egito, as ações de Deus, guiando Moisés na sua fuga) e desse modo, lidar com uma leitura pessoal sobre o tema seja tão complexo quanto manipular nitroglicerina.

Os grupos radicais presentes no judaísmo, cristianismo e islamismo não admitem qualquer questionamento de sua verdade e as tensões envolvendo grupos fundamentalistas é crescente: lembremos dos recentes atentados em Paris ou mesmo as execuções do Exército Islâmico, bem como, aumento da intolerância de certos grupos cristãos neopentecostais para com o catolicismo, espiritismo e as religiões de matriz africana no Brasil. 

Obviamente, sei que os eventos ocorridos no Brasil são poeira perto da barbárie praticada em outros lugares, mas é interessante apontar tal foco de tensão,  que sorrateiramente cresce, colaborando para mostrar que o brasileiro não é tão cordial quanto tenta parecer e também não somos uma democracia racial e muito menos religiosa, onde todos vivem harmoniosamente.

Ridley Scott escalou Christian Bale, muito celebrado pela trilogia de Batman dirigida por Christopher Nolan, portanto, transmitiria significativa credibilidade ao interpretar o papel de Moisés. Não foi o caso, pois o Moisés de Scott saiu como um jovem orgulhoso, sarcástico e quase agnóstico, sendo que, ao ser revelada a verdade sobre a sua origem, Moisés tenta se transformar numa espécie de líder guerrilheiro treinando um exército para lutar contra o poder do seu irmão de criação, Ramsés. 
Depois, ocorre a transição do líder militar para o líder espiritual, mas tudo acontecendo como eventos da Natureza, sem Moisés como o “instrumento de Deus” e por falar no “Todo-Poderoso”, este aparece a Moisés como um  frágil menino maltrapilho. Pelo que sabemos, o "Deus menino" está na outra parte: o Novo Testamento.

Então , qual seria o papel de Moisés, se Deus fez tudo? Aliás, tudo foi feito de tal modo, que  Moisés saiu molhado do Mar Vermelho...

O antagonista Ramsés, interpretado por Joel Edgerton, se parece com um moleque mimado, superprotegido pela mãe e negligenciado pelo pai. Suas ações são movidas pelo egoísmo e ciúmes e nada lembra o estadista Ramsés II, que governou o Egito entre 1279 e 1213 a.C., num período de significativa prosperidade.

Se Scott buscou uma releitura da narrativa lendária, se apropriando do mito num processo de reconstrução, o choque com a tradição seria inevitável.

Por exemplo, ao mostrar a opulência do Egito de Ramsés, muitas obras (palácios e templos) aparecem no cenário construído pela computação gráfica, mas em uma outra tomada, pirâmides em construção, como se ainda naquele contexto, as pirâmides de Gizé ainda não existissem. Erro crasso, afinal, ambienta-se o Êxodo no século XIII a.C., período do chamado Novo Império, enquanto as pirâmides foram construídas no Antigo Império (séc. XXVI-XXV a.C.) e nisso temos uma diferença de mais de mil anos.

Há outro ponto de forte controvérsia: o texto bíblico fala em “escravidão do povo hebreu”, enquanto muitos arqueólogos e historiadores contestam o fato, levando em conta as pesquisas mais recentes e as evidências históricas alheias ao texto bíblico. Nesse ponto, Scott optou por seguir a tradição.

Sabemos que inúmeras gerações de hebreus construíram oralmente a tradição no passado e só bem depois, por volta do século VIII a.C. começaram as ser registradas as informações que se transformaram na Torá, portanto, na análise destes textos, a condição alegórica e mitológica é marcante, não sendo possível conferir-lhes o status de “Verdade inquestionável” como a religião faz, seja pelo seu processo de organização, seja pelas edições e traduções que sofreu.

Então há uma Verdade? Qual seria a “História oficial”? E haveria algum limite para a licença poética do diretor?

A resposta depende do campo onde se encontra o leitor e nesse aspecto, cinéfilos laicos e religiosos encontrarão muito espaço para discutir, já os extremistas nem isso farão, pois o filme já foi visto e proibido em vários países, rotulado com “blasfêmia” e assim, a defesa cega da Fé abre mais espaço para a intolerância e violência.


Ridley Scott não quis blasfemar contra a fé de ninguém ou fazer polêmica pura e simplesmente para mais publicidade e lucro, do ponto de vista cinematográfico, entendo que este não é o seu melhor filme, porém pode-se dizer que nos ajuda a entender como estamos ameaçados por aqueles que desejam suprimir os conceitos de liberdade de expressão e de pensamento em troca de submissão e obediência cega.

Os antigos romanos bem diziam: "Ubi dubium ibi libertas", quer dizer, "Onde há dúvida, há liberdade"

Que assim seja sempre!

Sugestões do Gabinete:

"Os dez Mandamentos". Direção de Cecil B. DeMille, 1956, 220 min: 


"O Príncipe do Egito". Direção de Brenda Chapman, 1998, 110 min:




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