domingo, 2 de agosto de 2015

Reforma: as transformações religiosas e políticas na Europa ocidental

OS PRECURSORES

A ideia de “reforma” não era nova na Igreja Católica. Já fora defendida com sucesso pelos monges de Cluny, durante a Baixa Idade Média, culminando com a vitória dos reformistas sobre os simoníacos e a ascensão de Hildebrando, superior de Cluny que assumiu a tiara papal com o nome de Gregório VII.

Mas a Igreja Católica ainda estava entorpecida pelo poder que dispunha em uma sociedade profundamente arraigada à religião. Cresciam as denúncias de abusos de poder, descaso com o sagrado, da vida mundana que levavam os membros do clero, além da prática de simonia, levando boa parte da doutrina católica à desmoralização.



O Cativeiro de Avignon (1377-1417), nome dado ao episódio em que o Papa Bonifácio VII foi aprisionado pelo rei Felipe IV e levado para a França, desmoralizou ainda mais o papado perante o povo, que se afastava cada vez mais da fé católica. Não se pode esquecer de que esses fatos não afastaram a população europeia do Cristianismo, o que pode ser testemunhado pelas numerosas demonstrações de fé nas heresias medievais que serviram de ligação entre Deus e a população abandonada pela Igreja.

John Wycliffe (quadro à esquerda), inglês e professor em Oxford, lançou um movimento considerado herético pela cúpula da Igreja Católica, uma vez que combatia a centralização papal e propunha a diminuição da importância do clero. Além disso, defendia o confisco dos bens da Igreja e a adoção de votos de pobreza para todo o clero – prática comum entre os franciscanos. Wycliffe foi condenado como herege e só não foi executado devido à proteção que recebeu da monarquia inglesa.



Jan Huss, professor da Universidade de Praga, não teve tanta sorte. Iniciou junto aos seus alunos uma série de críticas à estrutura rígida da Igreja e acabou sendo chamado a Roma para retratar-se. Foi acusado de heresia e queimado vivo em 1415 (gravura ao lado), ficando para a posteridade como um herói nacional da região da Boêmia (atual República Tcheca).

Era nesse ambiente que apareciam diversas propostas que visavam a interpretar de maneira diferenciada o cristianismo. Tais movimentos imaginavam ser possível reformar o catolicismo. O aparecimento de novas religiões foi fruto da própria intransigência da cúpula clerical e, em grande medida, do fato de existirem grupos políticos e econômicos fortes, dispostos a enfrentar o papado e arcar com as consequências de serem vistos pelos outros como hereges.

REFORMA NO SACRO IMPÉRIO GERMÂNICO

No início do século XVI, o papado encontrava dificuldades para concluir a construção da Basílica de São Pedro e decidiu ampliar a venda de indulgências, com o objetivo de levantar recursos para a conclusão da obra.

As Cartas de Indulgências eram documentos que poderiam ser adquiridos mediante um polpudo pagamento. Aquele que estivesse de posse de uma carta como essa estava liberado do cumprimento da confissão quando se apresentasse a um padre. A oficialização do comércio de um dos sacramentos incomodou profundamente os cristãos mais dedicados.

A crise estourou no Sacro Império Romano Germânico, especificamente na Alemanha, país em que a Igreja Católica possuía nada mais do que um terço das terras férteis, o que despertava imensa insatisfação por parte dos nobres e comerciantes da região.
Em 1517, Martinho Lutero, que era monge agostiniano e professor de teologia na Universidade de Wüttenberg, revoltou-se contra as indulgências, que, na Alemanha, eram vendidas pelo bispo Tetzel. Afixou na Catedral da cidade as chamadas 95 Teses contra a Igreja contra o papado e os dogmas da Igreja Católica.



A Igreja reagiu e, em 1520, enviou para Wüttenberg uma bula papal, exigindo a retratação de Lutero, que queimou o documento em praça pública. O reformista alemão foi excomungado pelo Papa Leão X, e foram dados os primeiros passos para que Lutero fosse preso e devidamente executado. Entretanto, a Igreja não conseguiu levar adiante o processo contra Lutero. O monge recebeu abrigo do Duque da Saxônia, que, representando a nobreza alemã, protegeu o professor com objetivos bastante ousados. Sob essa proteção, Lutero começou a elaborar uma nova doutrina religiosa.
            
Durante esse período, Lutero lançou as bases de sua doutrina, traduzindo a Bíblia para o alemão e rejeitando a hierarquia religiosa, o culto de imagens e o celibato dos clérigos. Também defendia que a livre interpretação da Bíblia deveria ser o único dogma, enquanto a fé seria considerada a única fonte de salvação. A maioria dos sacramentos católicos foi extinta nessa nova religião, preservando-se apenas o batismo e a eucaristia. Destaca-se o fato de Lutero não aceitar o dogma católico da transubstanciação (transformação do pão e vinho em corpo e sangue de Cristo), defendendo apenas a presença do Espírito Santo no pão, isto é, a consubstanciação.
            
Carlos V, imperador do Sacro Império Romano Germânico, convocou a Dieta de Worms , onde tentou convencer os príncipes alemães a condenar Martinho Lutero e obter uma retratação do monge, mas não teve sucesso. Estava decretada oficialmente a divisão da Igreja Cristã Ocidental. Nascia o movimento protestante.
Em 1522, explodiu uma revolta da baixa nobreza alemã contra a Igreja Católica e os grandes senhores feudais. Lutero condenou o movimento e exortou os príncipes alemães a destruí-los.
Em 1524, o pastor Thomas Müntzer, seguidor do luteranismo, sublevou os camponeses alemães. Inspirando-se na ideia de que as Sagradas Escrituras não reservavam as terras para os senhores e a Igreja, procurou organizar os mais pobres para tomar as áreas expropriadas. O movimento liderado por Müntzer ficou conhecido como “anabatista”, que acreditava que o pastor seria o responsável por implantar o “reino cristão de mil anos”. Os anabatistas também eram milenaristas, isto é, aguardavam o retorno de Jesus que, estando na terra pela segunda vez, instituiria um reino de dez séculos e uma sociedade igualitária.

Tal revolta também foi condenada por Lutero, referindo-se aos rebeldes como “cães raivosos” e “saqueadores assassinos”. Isso deixava claro seu compromisso com os príncipes que o salvaram da fogueira. O movimento foi esmagado pela alta nobreza, Müntzer foi decapitado e milhares de camponeses morreram massacrados.
Em 1529, o imperador Carlos V convocou a Dieta de Spira, em que propôs aos luteranos a permanência destes no império, desde que, em troca, prometessem não aceitar novos membros. Os luteranos negaram-se e, a partir de então, foram alcunhados de "protestantes".
Muitos príncipes alemães viram no luteranismo uma oportunidade de tomar as terras da Igreja e destituir o imperador. Começou, assim, uma guerra civil que só chegou ao fim em 1555, com a Paz de Augsburgo, em que o Imperador delegava aos nobres a escolha da religião de seus súditos.

REFORMA NA INGLATERRA

O movimento reformista que ocorreu na Inglaterra precisa ser diferenciado daqueles que o antecederam diretamente. Se antes havia claras divergências doutrinárias entre os preceitos católicos e aqueles pregados por Lutero e Calvino, o caso inglês deve ser visto como um problema no qual os interesses políticos estavam acima dos religiosos.

O rei inglês, Henrique VIII, era casado com a nobre espanhola Catarina de Aragão, da poderosa Dinastia Habsburgo, cujo sobrinho, Carlos V, era imperador do Sacro Império Romano Germânico. O problema todo se estabeleceu à medida que se constatava a impossibilidade da esposa do monarca em dar à luz um herdeiro masculino. Após seis gestações e uma sucessão de abortos e crianças natimortas, havia apenas uma herdeira, a princesa Mary. Então, o rei decidiu pela separação e pediu ao Papa Clemente VII a anulação de seu casamento.



Diante da negativa papal a seu pedido de anulação do casamento, Henrique VIII rompeu com a Igreja Católica e fez que o Parlamento aprovasse o Ato de Supremacia (1534), segundo o qual nenhuma lei estabelecida fora da Inglaterra poderia ter validade no reino. Por este ato, o rei seria o chefe supremo da Igreja na Inglaterra: a Igreja Anglicana.

Henrique VIII foi excomungado pelo Papa, o que não significou muita coisa, pois o monarca dava demonstrações de ter o pleno controle da situação. O rei inglês aproveitou a oportunidade para livrar-se de vez de qualquer tipo de influência externa, principalmente de Roma. Assim, confiscou os bens e rendas da Igreja Católica, entregando-os à Igreja Anglicana.

Essas medidas fizeram que o Reino Unido tivesse o seguinte panorama religioso: na Inglaterra, a religião oficial era a anglicana, que recebeu o apoio de vários setores da nobreza; a população comerciante inglesa, camponeses e burgueses dividiam-se em calvinistas e uma minoria de católicos, ou ainda, de pessoas que se diziam convertidas ao anglicanismo, mas praticavam o catolicismo em segredo. Na Escócia, predominavam presbiterianos (calvinistas), enquanto a Irlanda preservou-se uma ilha católica, mantendo sua lealdade política a Henrique VIII.

O anglicanismo preservou muitas semelhanças com a religião católica, como por exemplo a hierarquia eclesiástica, cujo topo era ocupado pelo rei, seguido pelos bispos e depois os padres, os quais não eram obrigados a cumprir o celibato, podendo, portanto, se casar.
O culto substituiu gradativamente o latim pelo inglês e a eucaristia era vista como a presença espiritual de Cristo, sem a mudança de matéria pregada pelo catolicismo. A salvação estava na fé e a Igreja Anglicana seria útil para alcançar esse caminho, tendo ainda a figura dos santos e mártires como exemplos da conduta cristã, mas sem destinar-lhes um culto especial.  

Catarina e a pequena princesa Maria foram enviadas para a Espanha, já que Henrique VIII providenciara a anulação do casamento. Com a separação, o próximo passo foi buscar uma nova esposa, a qual pudesse gerar um varão e assim assegurar a sucessão do trono. A escolhida foi uma jovem que fazia parte do círculo da corte inglesa: Ana Bolena, mas, ironicamente, Henrique teve com ela uma outra filha, a futura Elisabeth I.

O casamento malogrou em virtude da acusação sofrida por Ana de ser adúltera e atentar contra a vida do rei. Ela foi presa, julgada e condenada à morte. A princesa Elisabeth foi educada longe da corte e sem sofrer nenhum tipo de pressão, pelo menos enquanto o pai esteve vivo.
Foi em seu terceiro casamento que Henrique conseguiu ter o sonhado filho: a nova esposa, Jane de Seymour, dera a luz em 1536 ao futuro rei Eduardo VI, mas Jane não conseguiu sobreviver às complicações do parto, morrendo alguns dias depois. Henrique ainda se casou mais três vezes, não teve mais filhos e acreditava que com o nascimento do varão, o reino estaria à salvo.

REFORMA NA SUÍÇA

João Calvino nasceu na França e foi encaminhado à carreira eclesiástica por seu pai, profundamente influenciado pelos eventos liderados por Martinho Lutero e Ulrich Zwingli, o reformador suíço, seguidor de Erasmo de Roterdã, e que perdeu a vida durante uma guerra civil-religiosa em seu país, a Suíça.



Calvino publicou a obra Instituição da Religião Cristã (1536), em que expôs os fundamentos de sua doutrina. Fixou-se em Genebra, rica cidade de mercadores, e transformou-a em sua "Jerusalém reconstruída", de onde controlava rigidamente os costumes através de suas Ordenações Eclesiásticas e do Consistório, composto por três sacerdotes da cidade e 12 dos mais respeitados burgueses eleitos por um conselho municipal.
O Consistório regulava a vida dos habitantes com o mesmo rigor da Igreja Católica. Inclusive, o sábado foi resgatado como o dia mais sagrado da semana, em oposição a católicos e protestantes, que guardam o domingo.

A Reforma Calvinista foi mais radical que a Luterana, uma vez que aboliu totalmente os ornamentos e imagens e pregava a salvação pela fé baseada na predestinação. Segundo Calvino, o ser humano é pecador e somente a graça divina, manifestada em favor dos eleitos, pode salvar o fiel do inferno. Esse perdão divino poderia vir na forma de prosperidade econômica, que seria atingida pelo indivíduo em seu ramo de trabalho. Dessa forma, Calvino condenava a miséria e a preguiça, enquanto o trabalho era exaltado como meio de acesso ao paraíso.

Em Genebra, Calvino instalou uma academia destinada à formação de pastores que percorreriam toda a Europa disseminando a nova religião. O alcance foi extraordinário, pois não faltavam cristãos que não viam nenhum mal em acumular capital. Assim, os calvinistas ficaram conhecidos como puritanos na Inglaterra, huguenotes na França, presbiterianos na Escócia, ou simplesmente calvinistas em outras partes do Ocidente. Na França, também eram chamados de protestantes, assim como os luteranos.


CONTRARREFORMA
           
Diante das reformas que se multiplicavam por toda a Europa, a Igreja Católica precisava tomar uma atitude. É bem verdade que uma série de movimentações internas já sinalizava com a possibilidade de transformações, mas não há dúvida de que tais medidas foram aceleradas pela iminência de uma conversão em grande escala de católicos para linhas de pensamento protestantes.
A reação por parte de Roma deveria ser intensa para estancar as “perdas”, e a primeira medida foi a convocação do Concílio de Trento entre 1545 e 1563, tendo suas sessões estendidas por quatro pontificados: Paulo III (1534-1549), Júlio III (1549-1555), Paulo IV (1555-1559) e Pio IV(1559-1565).

o Concílio de Trento (1545-63)

Vários princípios foram mantidos ou confirmados, como a presença de Cristo na Eucaristia, a salvação pela fé e pelas obras, os sete sacramentos (batismo, eucaristia, crisma, penitência, unção dos enfermos, matrimônio e ordem), o culto à Virgem Maria e aos santos. Estabeleceu-se também a confirmação da infalibilidade do papa e sua supremacia sobre toda a cristandade. Foi reafirmada a tradição eclesiástica: as interpretações dos padres, papas e Concílios eram reforçadas como fontes de salvação, bem como a Vulgata, tradução latina do texto feita por São Jerônimo no século V. 
O celibato clerical foi mantido, mas, para acabar com a gritante ignorância que tomava conta do clero, foram criados os seminários para a formação de sacerdotes, além do estabelecimento do catecismo que servisse para a uniformização do ensino da doutrina católica.

Edição do Índex, de 1758, durante o papado de Bento XIV


Foi elaborado o Index Librorum Prohibitorum, que nada mais era do que uma relação dos livros que todos os católicos jamais deveriam ler. Finalmente, foram ampliados os poderes do Tribunal do Santo Ofício ou da Santa Inquisição, estabelecendo a perseguição sistemática a todos que fossem vistos como hereges, e nesta perspectiva, acusações de bruxaria, protestantismo, judeus convertidos que ainda praticavam costumes da velha fé, questionamentos de sábios, pensadores e cientistas (o processo de Galileu, a execução Giordano Bruno em 1600) e todo aquele que tivesse um comportamento incompatível com  os valores e dogmas da Igreja.

Galileu Galilei foi processado pela Inquisição em 1639, abjurou seus estudos e ficou em prisão domiciliar até sua morte em 1642.

A "visão" de Santo Inácio de Loyola



Para conter a expansão do protestantismo, a Igreja Católica abriu espaço para uma nova ordem religiosa, a Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola, nobre de origem espanhola que trocou a vida militar pelo serviço a Deus, fazendo voto de pobreza e de castidade. A nova ordem foi reconhecida em 1540 pelo Papa Paulo III. Os jesuítas, ou os “soldados de Cristo”, desenvolveram um trabalho de evangelização no norte da Europa, fundando colégios e atraindo os filhos de famílias abastadas, bem como foram a ponta de lança na catequese do Novo Mundo, entre os séculos XVI e XVIII e nesse contexto, homens de diferentes origens e condições passaram a se integrar ao jesuítas, atuando na organização de missões na América.

Atlas de História Geral. Hilário Franco Jr e Ruy de Oliveira Andrade. Editora Scipione, 2001.

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