A última quinzena de março de 1964 foi palco de uma escalada de tensão crescente. O turbilhão tivera sua origem bem antes: 25 de agosto de 1961 com a renúncia de Jânio Quadros ao cargo de presidente da República e ali já se engendrava o desrespeito à Constituição de 1946, pois a UDN e os setores conservadores temiam pela posse do vice-presidente João Goulart (afilhado político de Getúlio, seu ministro do Trabalho entre 1953-54 e grande simpatizante das causas populares) que naquela altura se encontrava em viagem ao exterior e buscava retornar o quanto antes.
De um lado, os legalistas que defendiam o cumprimento da sucessão sem quaisquer alterações, destacando-se aí o papel do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que com o uso dos recursos ao seu alcance, lançou a "campanha da legalidade" para defender João Goulart, não se descartando inclusive, a opção armada de resistência.
Nesse processo, o resultado foi a saída conciliatória, que através de um projeto de Emenda Constitucional, estabelecia a mudança do sistema político de governo, implantando no regime republicano, o parlamentarismo. Jango (apelido de João Goulart) assumiria a Presidência, com poderes esvaziados e simbólicos de Chefe de Estado enquanto o poder estaria concentrado no Primeiro-Ministro, como Chefe de Governo, apoiado por uma bancada majoritária no Congresso Nacional, desse modo, o novo sistema de governo implantado seria submetido a um plebiscito marcado para 1965.
A partir de então, Jango travou uma longa luta para que o plebiscito fosse antecipado, fato este ocorrido em 4 de janeiro de 1963, dando então, a posse com plenos poderes a Jango que obtivera cerca de 82% de votação em favor do presidencialismo.
Dotado de plenos poderes, Jango começou o processo que levaria a uma nova ebulição política, pois faria com que as elites e setores conservadores buscassem a pressão constante contra os projetos reformistas de Jango. Temia-se a "guinada à esquerda" aos moldes cubanos. Alias, conjuntura internacional era ainda explosiva: a tentativa de deposição de Fidel Castro, apoiada pelos EUA fracassara na Baía dos Porcos; a construção do Muro de Berlim em agosto de 1961 e a "III Guerra Mundial" quase fora detonada pelo embate entre a URSS e os EUA, quanto à implantação de mísseis nucleares soviéticos em Cuba em outubro de 1962.
A América Latina era pensada e entendida como uma "área natural de influência" dos EUA e qualquer intromissão ou distanciamento desta postura implicava numa "quebra de ordem" da hegemonia estadunidense, fosse qual fosse o governo/governante, não havia espaço para novas "Cubas".
Mas, no âmbito interno, existia uma situação bastante clara: o Brasil mudara bastante em duas décadas, ampliando sua indústria numa política clara de substituição das importações, gerando um crescimento do PIB, bem como uma mudança no perfil social, que deixava de ser exclusivamente rural para cada vez mais se urbanizar. No entanto, a distribuição de renda era muito desigual e privilégios de origem colonial se preservavam nos rincões do país para o benefício das camadas dominantes.
Fonte: Atlas de História do Brasil - editora Scipione
Quase 30% da riqueza produzida pelo país se encontrava nas mãos de 1% da chamada "classe A", além da concentração de riqueza, a concentração fundiária era um tema tido por "intocável", especialmente pela bancada ruralista presente no Congresso Nacional. Qualquer ação que apontasse para alterar questões como remessas de lucro ao estrangeiro, reforma agrária ou que alterasse a organização da lógica produtiva seria vista e interpretada como "atitudes comunistas".
Aos 13 de março de 1964, no discurso da Central do Brasil, proferido a uma multidão de mais de 500.000 pessoas, Jango apontara com firmeza seu caminho: a implantação das Reformas de Base (agrária, habitacional, saúde, transporte, educação). Ruptura do status quo que lançava um alerta para todos os setores da direita, pois se algo não fosse feito, a "nação corria perigo".
Em 14 de março de 1964, Jango assinou o decreto que declarava como "áreas de interesse social para fins de desapropriação" as terras juntos aos eixos ferroviários e rodoviários federais, bem como a áreas improdutivas que teriam se beneficiado com programas de apoio e de irrigação do governo.
A resposta veio num relâmpago: em diferentes cidades do Brasil, mas tendo como epicentro São Paulo, ocorreu em 19 de março de 1964, a "Marcha da Família com Deus pela Liberdade", contando com cerca de 100.000 pessoas(os números são controversos e variam de acordo com a fonte consultada), articuladas através da Liga das Senhoras Católicas, da Tradição Família e Propriedade, além do apoio de diferentes setores civis e mesmo militares (os soldados foram dispensados neste dia para se integrarem a Marcha), portanto, uma resposta clara e bem ativa ao discurso da Central do Brasil e o objetivo era muito bem delimitado: exortavam que as Forças Armadas depusessem o governo João Goulart para salvar o Brasil do comunismo.
Fonte: Atlas de História do Brasil - editora Scipione
O processo de polarização continuava. Tinha-se a impressão que o país estava rumando para o caos, já que a oposição a Jango buscava bloquear seus projetos no Congresso, incitava a população civil à desordem e ainda havia, naqueles últimos dias de março, algum apoio significativo das Forças Armadas ao governo, porém, tudo foi muito transitório, especialmente com a postura indulgente de Jango para com a rebelião de marinheiros em 24 de março de 1964, tendo nesse caso, a necessidade da intervenção do Exército contra os marujos rebelados, mas Jango não lhes punira e sim, lhes anistiara, qualificando dessa forma, o que se entendia como quebra da disciplina e da hierarquia na ordem militar, algo inaceitável para os comandantes das três armas.
Jango se sustentava, perante às Forças Armadas, com uma "dispositivo militar" que se propunha defendê-lo de possíveis ameaças e talvez, como sugerem alguns, de mantê-lo no poder e assim, abririam o espaço para um golpe à esquerda. O ministro da Guerra, Jair Dantas Ribeiro, bem como o comandante do I Exército, Armando de Moraes Âncora e do II Exército, Amaury Kruel (amigo próximo a Jango) e para o III, as tropas do Sul eram chefiadas pelo general Benjamin Rodrigues Galhardo.
Como inimigos de Jango: Carlos Lacerda (governador da Guanabara), Magalhães Pinto (governador de Minas Gerais) e Ademar de Barros (governador de São Paulo); no campo dos aliados continuavam Leonel Brizola (ex-governador do Rio Grande do Sul) e Miguel Arraes (governador de Pernambuco). No campo social, o apoio das Ligas Camponesas, encabeçadas por Francisco Julião, defensor das reformas "na lei ou na marra", além de diferentes sindicatos em diferentes centros industriais.
Em 30 de março de 1964, Jango se destinara à sede do Automóvel Clube, no intuito de conversar com os jovens militares, tendo desse modo, uma postura maior de indulgência para com os soldados, marinheiros, cabos e sargentos, do que esperava o alto comando militar.
No entanto, a situação de deterioração da ordem era encarada pelos militares como o momento da ação e justamente, tudo já se articulava desde o comício da Central do Brasil. Nomes como os generais Humberto Castelo Branco, Arthur da Costa e Silva, Ernesto Geisel, Olympio Mourão Filho,Carlos Luiz Guedes e o coronel Golbery do Couto e Silva
Enquanto isso, o governo de Lyndon Johnson acompanhava com atenção o desenrolar dos fatos, tendo seu embaixador no Brasil, Lincoln Gordon, além de outro diplomata de grande prestígio, Vernon Walters, informações detalhadas sobre tudo que se dava "nos dois lados da trincheira". Johnson autorizara o envio de uma força-tarefa para apoiar a ação militar brasileira em caso de resistência de João Goulart. Era a famosa "Operação Brother Sam" para se deslocar ao Atlântico sul, "mostrando a bandeira" e no limite das águas territoriais brasileiras.
Na madrugada de 31 de março de 1964, o general Olympio Mourão Filho mobiliza suas tropas em direção ao Rio de Janeiro, tendo gradativamente ao longo do dia, ampliação do apoio em relação ao decréscimo da lealdade pelos legalistas. O apoio dado a Jango foi minguando e quando seu amigo, Amaury Kruel mudou de lado, a sensação era de que tudo já estava se perdendo.
Fonte: Atlas de História do Brasil - editora Scipione
Jango optou pelo não-enfrentamento. Voou do Rio para Brasília, seguindo depois para Porto Alegre, num avião da FAB, enquanto nesse ínterim, não tendo renunciado ou sido preso, nas sombras daquela madrugada de 1 para 2 de abril, uma "sessão extraordinária" do Congresso fora convocada e nela se "declarou a vacância da Presidência da República" e foi dada a posse ao presidente da Câmara Deputado Ranieri Mazzilli. Buscava-se no abrigo das sombras dar um ar de legalidade à deposição de Jango, que horas mais tarde, atravessou a fronteira do Rio Grande do Sul e se destinara a uma de suas estâncias no Uruguai.
Os militares golpistas renderam seus companheiros legalistas e assumiram o controle da máquina governamental. Sob a bandeira da "segurança e ordem", a chamada "Revolução Redentora de 1964" desfechava os últimos passos contra as eventuais ameaças: naquelas primeiras horas já se mapeavam todos aqueles que seriam empecilhos ao novo regime, criando-se listas para detenção de civis (5000 detidos até os idos de 7 de abril de 1964) e de militares (punição para 421 oficiais tirados da ativa para a reserva), além da deposição de diretorias de sindicatos com mais 5000 associados. Por outro lado, aqueles que se colocaram como leais ao governo militar foram agraciados com promoções.
Já seria bastante forte falar das prisões e aposentadorias forçadas, mas naquelas primeiras horas, houve espaço para outras formas de violência, como por exemplo, o caso de Gregório Bezerra (militante do PCB em Pernambuco) que fora espancado e arrastado amarrado na traseira de um jipe militar pelos bairros pobres de Recife. Somam-se cerca de 20 mortos, decorrentes de ações de prisão ou suicídios, no caso de alguns militares que não aceitaram a hipótese de serem presos, uma vez que, não cometeram crimes, mas tornaram-se "inimigos" da Revolução de 1964.
Atos de desforra, de covardia e oportunismo foram marcantes naqueles primeiros meses pós-golpe, encobertos sob a perspectiva de que tudo deveria ser defendido pelo bem da Segurança Nacional e pouco a pouco, já apontavam o crescente dos abusos, que muito buscaram minimizar na condição de "excessos ou exageros" no cumprimento do dever. A posição oficial era negar a existência de qualquer mecanismo repressivo que envolvesse violência e tortura.
Se Jango e seus aliados foram neutralizados com significativa rapidez, sem derramamento de sangue em larga escala, o turbilhão de forças começava a se manifestar dentro das próprias Forças Armadas, pois a visão sobre o que seria dali era distinta: Castelo Branco defendia uma breve passagem dos militares pelo poder dentro de uma democracia restringida, mas do outro lado, estavam os oficiais da chamada "linha dura" que pensavam num governo de "longo prazo".
Sob os aplausos dos conservadores de diferentes segmentos da sociedade, sucumbia a tão jovem democracia da República Liberal , implantada com a Constituição de 1946, dando lugar a um Regime Militar que alcançara o poder através de um golpe civil-militar, imbuídos de elevado princípios morais e de valores cívicos que propunham a salvação da nação e colaboraram para a extensão do governo militar em 21 anos, buscando exterminar todo tipo de ação contrária ao regime.
A sociedade brasileira viu sucumbir pouco a pouco, seus direitos e liberdades, sendo vítima de 17 "AI"(decretos-lei de validade imediata chamados de Atos Institucionais) que se somavam aos "IPM"(Inquéritos Policiais Militares pelos quais os chamados "subversivos" era julgados) e todo um aparelho repressivo que unia as inteligências das Forças Armadas, bem como o centro do processo de espionagem, o SNI(Serviço Nacional de Informação), que municiava o Poder Executivo federal com todas as informações necessárias para a defesa da "Doutrina de Segurança Nacional".
Mais uma página bastante sinistra que foi escrita em nossa história e agora começamos a estudá-la melhor.