As Ricas Horas do Duque de Berry

As Ricas Horas do Duque de Berry
As Ricas Horas do Duque de Berry. Produção dos irmãos Limbourg - séc. XV. Mês de julho

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Cristianismo: um caldeirão cultural


Atualmente é difícil imaginar um mundo sem a existência do cristianismo, uma religião com mais de 2 bilhões de fiéis espalhados pelo mundo, cujos valores ajudaram a formar aquilo que se entende por mundo “ocidental”. No entanto, em seus dois milênios de existência, a história do cristianismo foi marcada por discussões e disputas dos fiéis entre si, destes últimos com os “não-fiéis” (gentios), que tanto de um lado como outro, resultaram em divisões, rupturas, guerras, massacres. Enfim, todos disputavam o controle absoluto sobre a doutrina deixada por um humilde homem, da cidade de Nazaré na Galiléia, tendo como mensagem principal “Amar a Deus sobre todas as coisas e amar o próximo como a ti mesmo”.

Trezentos anos de perseguições se seguiram entre a morte de Jesus e a liberdade de culto concedida pelo imperador romano Constantino com o Édito de Milão no ano de 313, pois os seguidores de Jesus eram vistos como uma ameaça ao Império já que negavam a divindade do imperador e os deuses e se colocavam como seguidores daquele que se apresentou como filho do único Deus.

Mesmo com as perseguições, o cristianismo não deixou de crescer num processo que começou na base da sociedade romana e gradativamente foi atingindo os mais diferentes grupos sociais. Muitos se diziam praticante do culto aos deuses romanos e ao imperador, mas secretamente em suas casas ou na escuridão das catacumbas (cemitérios subterrâneos) realizavam o culto cristão, procurando escapar dos massacres, crucificações, das arenas para serem queimados vivos ou devorados pelos leões.

Ao longo do século IV, o movimento de difusão do cristianismo foi cada vez maior e sem o temor das perseguições e com a proteção dos imperadores, seja na manutenção da liberdade de culto, seja nas doações para a construção dos primeiros santuários. No ano de 391, o imperador romano Teodósio através do Édito de Tessalônica estabeleceu o Cristianismo como religião oficial de todo o Império Romano e tornou proibido o culto aos deuses de outros povos sob a ameaça de prisão e confisco de bens.

A adoção do cristianismo como religião oficial representou mais um passo importante na construção daquilo que entendemos hoje por “igreja”, uma palavra derivada do termo grego Eclésia e significa assembléia, conjunto, grupo. A evangelização foi um fenômeno muito lento e gradual, da mesma forma que a organização da chamada Igreja Cristã. Cada comunidade tinha um líder, o qual era denominado episcópos (bispo) e tinha a autoridade máxima sobre os fiéis, mas nesse período, além de ser um líder religioso, o bispo era também um conselheiro político e chefe militar preocupado com a manutenção das comunidades cristã e se fosse o caso da defesa das mesmas.

Destacaram-se nesse contexto de formação alguns destes religiosos, tais como: o bispo Ambrósio de Milão (340-397) importante conselheiro e crítico do imperador Teodósio e também comentador dos textos bíblicos; Agostinho de Hipona (395-430) batizado por Ambrósio, responsável por uma vasta obra teológica; Eusébio Sofrônio, dito Jerônimo (340-420) que organizou a Vulgata, traduzindo a Bíblia do hebraico (Antigo Testamento) e grego (Novo Testamento) para o latim por volta do ano 400. Todos foram posteriormente canonizados, sendo considerados santos, além de doutores da Igreja por fundamentarem a doutrina cristã.

Os séculos IV e V foram o momento de desestabilização e crise do Império Romano, dividido em duas partes pelo imperador Teodósio por volta de 395 e pressionado por inúmeras tribos que viviam nas suas fronteiras (não tão sólidas e seguras) como de regiões mais distantes do norte da Europa e da Ásia Central e do Leste. O império ocidental agonizava, seja pela ruralização e crise econômica crescente desde o século III, seja pelos ataques e invasões de povos que os romanos chamavam de “bárbaros”, já que não possuíam aquilo que os romanos entendiam por civilização.

Com a queda do Império Romano ocidental em 476 e sua desorganização, um novo contexto se formou: os territórios foram partilhados (nem sempre de modo pacífico) entre as tribos germânicas, nórdicas e asiáticas que se estabeleceram na Europa Ocidental, dando origem a pequenos reinos.

Mas nem tudo que era romano desapareceu, pelo contrário a Igreja cristã sobreviveu e seria o principal referencial das tradições e costumes romanos, os quais foram agregados em parte pelos novos senhores da Europa ocidental: os bispos atuaram como conselheiros e ministros dos reis convertidos; a tradição oral das tribos foi gradativamente substituída pela escrita e a língua latina como seu principal vetor na organização das leis e com os avanços na evangelização, novas igrejas eram construídas e comunidades eram fundadas como, por exemplo, os mosteiros e abadias, destacando-se nesse processo, Bento de Núrsia (480-547) que organizou a primeira ordem de monges em Monte Cassino no norte da Itália.

O modelo de vida monástica tinha como referência a vida do próprio Cristo, exaltando a pobreza, a castidade e a obediência. Bento de Núrsia estabeleceu esses princípios numa Regra disciplinar, a qual se tornou posteriormente uma referência para outras comunidades e ordens religiosas, que pode ser resumida na expressão “Ora et Labora”, isto é, oração e trabalho.

No entanto, cabe a pergunta: em que termo ocorreu essa evangelização?

Não é possível pensar num processo imediato e rápido, mas como algo lento e gradual que precisou incorporar elementos da cultura tida por bárbara para que os resultados fossem efetivos. Por exemplo, a construção de igrejas sobre antigos lugares de culto não-cristão (templos, árvores ou fontes sagradas) para os diferentes povos, bem como a fusão das festividades ou rituais e nesse caso, a comemoração do nascimento de Cristo é lapidar.

Apolo no carro solar - pintura de um vaso grego


A data de 25 de dezembro foi ajustada para corresponder a festa do solstício de inverno, ou seja, a entrada do inverno no hemisfério norte, na qual se cultuava o sol (Solis Invictus, Sol Invencível em latim). Ao se comemorar conjuntamente a Natividade de Jesus e a festa do Sol, os padres foram criando uma intimidade maior dos chamados pagãos com os costumes cristãos e ao longo de alguns séculos, a cristianização se efetivou. Num lugar onde houvesse o culto de uma deusa Mãe ou da Terra, transformava-se numa igreja dedicada à Virgem Maria, como muitas catedrais em diferentes partes da Europa. Ou então, o calendário que foi organizado pela Igreja em 394, tendo o marco o nascimento de Jesus e não mais a contagem das Olimpíadas ou a fundação de Roma, sendo que os jogos foram banidos pela Igreja por representarem adoração aos deuses pagãos.
 
Mosaico do séc. V, apresentando Jesus como a releitura do Sol

Por outro lado, a cristianização construiu uma ideia de “Mal”, influenciada pela cultura judaica a partir do anjo caído Satã e de outros elementos que se faziam presentes como a tentação das fraquezas humanas a partir de um “ser maligno” ardiloso responsável pelos pecados. Nesse contexto, por exemplo, o “deus celta chifrudo Kernunnos” relacionado com a abundância passou a tomar a correspondência do Mal e daí uma possível aproximação com a imagem do diabo: chifrudo, feio, de corpo de bode e fedor de enxofre.


Relevo em bronze de um caldeirão celta

Pode-se dizer que o cristianismo não nasceu formado de uma matriz única, mas se constituiu como uma religião agregadora de diferentes elementos culturais para a sua organização e que possibilitou não só sua articulação dentro das novas esferas do poder do Império Romano do Ocidente e depois na Europa feudal, mas também da construção de uma visão de mundo e de uma conduta ética que seria o fio condutor daquilo que entendemos por “civilização ocidental”, sem deixar de lado as disputas de influência e poder sobre os espíritos e corpos, para não dizer, bens materiais dos seus fiéis, dilatando-se junto com a expansão europeia  a partir do século XV para diferentes partes do planeta e infelizmente, servindo de justificativa para ações dominadoras ou ditas civilizatórias, mas que na verdade, apenas serviam de pretexto para formas distintas  e vis de dominação.

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Filme "Desmundo": uma viagem aos tempos da colônia



O filme Desmundo buscou retratar com significativa fidelidade o período colonial durante o século XVI. Lançado em 2003, traz no elenco os atores Simone Spoladore, Osmar Prado, Berta Zemei, Beatriz Segall, Caco Ciocler e entre outros. Com a direção de Alain Fresnot e roteiro de Sabina Anzuategui, Anna Muylaert e do próprio diretor, baseado no livro de Ana Miranda.

A história passa em 1570, no Brasil colonial e conta a vinda de órfãs portuguesas ao país para desposarem com colonizadores que aqui viviam e mostra uma preocupação do Coroa para que não houvesse mistura de raças, entre os portugueses e as índias. Uma destas jovens, Oribela (Simone Spoladore) por ser muito religiosa estava muito relutante em se casar. Mas, depois de repudiar um primeiro marido, é obrigada a casar com o senhor de engenho Francisco de Albuquerque (Osmar Prado), um homem de posses, porém muito rude.  A tensão marca o livro: tentativas de fuga, revoltas contra o marido, envolvimento e fuga com Ximeno Dias (Caco Ciocler), que no livro é apresentado como um mouro convertido ao cristianismo e no filme ele é retratado como um cristão-novo (judeu convertido a força para o catolicismo).

Destaca-se no filme as locações, a qualidade da caracterização dos personagens e a realidade mostrada, proporcionando uma visão particular: pois é uma voz feminina, são as memórias de Oribela, que retratam a colonização do Brasil, o domínio português sobre os índio e o poder da Igreja e da Coroa Portuguesa, bem como a sociedade patriarcal aqui implantada. O uso do português arcaico, que constitui a base da linguagem do romance, no filme também colabora para a recuperação dos costumes e do cotidiano daquela época.

Nota biográfica: Ana Miranda

Voltada para a linguagem, dotada de um brasilianismo intenso, Ana Miranda realiza um trabalho de redescoberta e valorização do nosso tesouro literário, que a leva a dialogar com obras e autores de nossa literatura, numa época em que as culturas delicadas são ameaçadas pela força de uma cultura universal. Fundada em séria e vasta pesquisa, recria épocas e situações que se referem à história literária brasileira, mas, primordialmente, dá vida a linguagens perdidas no tempo. Sua obra tem sido matéria de estudos na área acadêmica, recebendo teses e monografias, geralmente ligadas a questões de literatura & história, barroco brasileiro, romantismo, ou pós-modernidade. Recebeu alguns prêmios, como Jabutis e da Academia Brasileira de Letras; teve sua obra traduzida em cerca de vinte países, e conquistou expressivo número de leitores, no Brasil. Ana Miranda consagrou-se igualmente pela inclusão de seu Boca do Inferno no cânon dos cem maiores romances em língua portuguesa do século 20, elaborado por estudiosos da literatura, brasileiros e portugueses (O Globo, 5/set/98). Seus principais romances são: Boca do Inferno, 1989; A última quimera, 1995; Desmundo, 1996; Amrik, 1998; Dias & Dias, 2002; Yuxin, 2009. Todos editados pela Companhia das Letras. Nasceu no Ceará, em 1951, onde vive atualmente, após cinquenta anos entre Rio, Brasília e São Paulo.

Fonte: www.anamirandaliteratura.com.br


quarta-feira, 15 de maio de 2013

A criação do Estado de Israel: 65 anos de tensão crescente no Oriente Médio

Fonte: Portal UOL - by Reuters

Palestinos entraram em confronto com forças israelenses nesta quarta-feira na Cisjordânia ocupada durante manifestações para marcar os 65 anos da data que denominam de Nakba (Catástrofe), quando a criação do Estado de Israel resultou na perda de suas casas e eles se tornaram refugiados.
Um projétil lançado da Faixa de Gaza, governada pelo movimento islamista Hamas, explodiu em área aberta em Israel, sem causar vítimas, segundo um porta-voz militar israelense. Nenhum grupo de Gaza reivindicou de imediato a responsabilidade pelo disparo.



O secretário de Estado norte-americano, John Kerry, deve retornar à região na terça-feira, em nova tentativa de reavivar as conversações de paz, congeladas desde 2010.
Mas ainda não há nada definido e muitos palestinos se agarram ao desejo de refugiados e descendentes de retornar a terras ancestrais agora parte do território de Israel -- ideia rejeitada por Israel, que alega que isso levaria ao fim do Estado judeu.

Manifestantes entraram em choque com forças israelenses diante de um campo de refugiados perto da cidade de Hebron, na Cisjordânia, e de uma prisão nas imediações de Ramallah, também nesse território. Vários palestinos ficaram feridos.
Em Jerusalém, a polícia israelense se confrontou com manifestantes palestinos, lançou granadas de efeito moral contra eles e efetuou várias prisões.


Milhares também protestaram na praça principal de Ramallah, a capital de facto dos palestinos enquanto Jerusalém permanece sob controle israelense. Eles seguravam cartazes com os nomes das vilas habitadas por palestinos até 1948 e mostravam chaves velhas, símbolos das casas perdidas.
"Pelo meu futuro e pelo retorno à terra da minha família, eu não quero mais negociações inúteis, mas o caminho da resistência e do fuzil", disse Ahmed al-Bedu, um palestino de 15 anos, com cidadania jordaniana.

Árabes da região e de países vizinhos não conseguiram impedir na Guerra de 1948 o estabelecimento dos judeus na Palestina, os quais citavam laços bíblicos com a terra e a necessidade de um Estado judaico na região, que até então estava sob controle colonial britânico.
5,3 milhões de refugiados
Muitos moradores árabes fugiram ou foram expulsos à força de suas casas e depois impedidos de retornar. Somente a Jordânia, que agora tem um tratado de paz com Israel, deu cidadania aos refugiados palestinos.

Segundo cifras oficiais palestinas divulgadas esta semana, 5,3 milhões de palestinos --quase a metade do total distribuído por vários países-- são registrados pelas Nações Unidas como refugiados na Síria, Líbano, Jordânia, Cisjordânia e Gaza.
Boa parte deles vive em campos de refugiados superlotados, quase sem acesso a emprego e serviços básicos.
Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina, apoiada por países ocidentais, e ele mesmo um refugiado de uma cidade no norte de Israel, causou ultraje entre os palestinos no passado ao dizer a uma TV israelense que não pretende voltar para sua região de origem.



O principal negociador palestino com Israel, Saeb Erekat, disse nesta quarta-feira que os conflitos sectários na Síria e no Iraque põem perigo os palestinos lá residentes e que a recusa de Israel em "assumir a responsabilidade pela questão dos refugiados" e chegar a um acordo sobre uma "solução justa" para eles está prejudicando as perspectivas de paz.

A Autoridade Palestina quer criar um Estado independente na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, com Jerusalém Oriental como sua capital. Todos esses territórios foram tomados por Israel na guerra de 1967. Israel considera Jerusalém sua capital "eterna e indivisível".

domingo, 5 de maio de 2013

Panis et circenses: entretenimento como forma de dominação




A concentração de terras e de riqueza nas mãos dos patrícios durante a República romana forneceu o ambiente para inúmeras tensões, seja pelas disputas internas pelo poder, seja pelas necessidades da plebe, que excluída das riquezas, poderia se tornar um grande perigo e o bom exemplo disso foi o tratamento dado aos irmãos Graco, Tibério e Caio, que durante o exercício da condição de tribunos da Plebe, pagaram com suas vidas já que ousaram a propor uma divisão de parte das terras conquistadas aos plebeus (a tão temida reforma agrária).

Como tamanha audácia não poderiam ficar impune, Tibério e Caio Graco foram mortos pelo Senado, 133 e 121 a.C. respectivamente, e ao invés da partilha de terras, a plebe passava a receber jogos, cuja entrada era gratuita e entre as atrações ou antes delas, pão era também gratuitamente distribuído, num gesto de grandeza e poder do governo de Roma ao seu povo. 

Os jogos eram de diversas naturezas: corridas de cavalos em bigas (carros com 2 cavalos) ou quadrigas (carros com 4 cavalos), lutas de gladiadores entre si ou contra animais selvagens (chamadas de venatio). Além disso, haviam os jogos pagos, os muneras (em latim significa obrigação), jogos que deveriam honrar a memória de um morto ou então eram uma forma de entretenimento que um poderoso patrício usava para se promover perante a plebe, tendo em vista, a ocupação de um futuro cargo público.

Os venatio: homens versus bestas selvagens


O gladiador era um escravo treinado para lutar  ou um criminoso que tivera como condenação a luta na arena, podendo armado lutar em defesa de sua vida. O termo é derivado de gladius, a espada curta romana e daí, gladiator, mas esta espada não era a única possibilidade de armamento, existindo várias categorias: retiarius (usando tridente e rede, além de uma faca curta); mirmillo (capacete, escudo retangular e espada); equites (montava a cavalo, usando lança e escudo curto redondo, enfrentando apenas adversários de mesma categoria); hoplomachus (armado com o gládio e capacete, tendo faixas de couro que cobriam pulsos, pernas e tórax); dimachaeri (lutador dom dois gládios); thraces (usava o gládio, o escudo redondo pequeno e capacete, além de caneleiras de metal e faixas de couro para a proteção dos braços); andabatæ (montava a cavalo e usava lança, enfrentando apenas oponentes montados) e o secutor (usava um escudo grande retangular, gládio e capacete com viseira, além de faixas de proteção nos braços e caneleiras).

O gosto pelos espetáculos sangrentos era algo muito forte na cultura romana, sendo as arenas um ponto de convergência entre os diferentes segmentos da sociedade romana, independentemente da sua condição econômica, pois para as famílias abastadas, patrocinar jogos era algo de grande prestígio entre os poderosos, da mesma forma que assisti-los, era um momento sublime, um exercício de poder que pairava sobre o sentimento de “ser romano” e poder decidir se o agonizante derrotado seria morto pelo “golpe de misericórdia”, gritando “iúgula, iúgula” que significa em latim “degola ” ou não, situação condensada no gesto do polegar apontando para cima, respectivamente.

Construído pela dinastia Flávia, entre os reinados de Vespasiano (69-79 d.C.) e Tito (79-81 d.C.), o anfiteatro Flávio, como fora chamado inicialmente, representou a principal arena do mundo romano, sendo erguido não muito longe do palácio que o imperador Nero (54-68 d.C.) erguera, depois de incendiar aquela parte da cidade e assim, os imperadores Flávios, devolveram uma porção da cidade que teria sido “confiscada” pelo insano Nero.

Maquete da Roma antiga - Museo della Civilitá - Roma. 

O nome Coliseu (observe a maquete acima, no centro da imagem ao alto) deriva de uma gigantesca estátua de Nero (colossos em grego que passa ao latim como coliseum) junto aos jardins do palácio. O anfiteatro era uma elipse de 188 por 156 metros, tendo 49 metros de altura e chegava a comportar cerca de 50 mil espectadores, atraindo pessoas de todas as condições sociais, separadas em setores distintos e que ali buscavam diversão. Além das lutas, são registradas a realização de batalhas navais encenadas, tendo as águas dos aquedutos ali desviadas e assim, a arena de areia dava lugar a um “lago artificial”, demonstração clara do refinamento tecnológico e o gosto pela monumentalidade que os romanos tinham.

Da literatura o cinema tomou emprestado a expressão “épico” que provém da epopéia, que, segundo Emil Staiger, em seu trabalho Conceitos Fundamentais da Poética, coloca o leitor como “alguém que acompanha o percurso do heroi, com suas aventuras, lutas e tensões” e assim, no cinema, o heroi é o protagonista do filme, aquele pelo qual o público acompanhará passo a passo, numa torcida desenfreada pelo seu sucesso, que nem sempre ocorre, dependendo do personagem abordado ou do filme que é produzido, pois alguns diretores preferem retratar um anti-herói ou então, um personagem secundário pode roubar a cena do protagonista e assim, o mais importante é assistir o filme.


Dentre meus filmes preferidos, posso mencionar dois que se colocam em contextos de produção bem distintos: o Spartacus de Stanley Kubrick de 1960 e o Gladiador de Ridley Scott de 2000. Há entre eles um abismo de 40 anos, além de questões históricas distintas, tanto no que diz respeito à época em que foram produzidos, quanto ao período que evocam, mas ambos se unem no empunhar de um gládio por um herói que, nas arenas ou fora, delas buscava defender seus ideais.



Spartacus existiu, viveu no fim da República romana e se trata de um dos maiores inimigos que Roma tinha até então enfrentado dentro de seu território, pois sua revolta, acompanhada pela libertação de outros escravos numa proporção sem precedentes (falamos em 20.000 escravos) que chegou a ameaçar de modo consistente o poder romano e teve que ser sufocado, alias, com muita dificuldade em 71 a.C. pelas tropas do general Crasso, responsável pela sua crucificação (morte cruel e lenta destinada aos ladrões e subversivos) e de seus 4.000 companheiros ao longo da Via Ápia (estrada que ligava Roma ao sul da península, passando pela Campânia, foco inicial da revolta junto à cidade de Cápua, conforme o mapa ao lado).

A imagem dos oprimidos se erguendo contra os opressores, sintetizada não só na atuação de Kirk Douglas atuando no papel de Spartacus numa tentativa de resgatar a sua altivez e romper a ordem imposta aos escravos ou ainda a fala final do líder escravo, ao se referir ao companheiro Antonius, o qual acabara de matar: “ele voltará e na forma de milhões”, uma defesa clara da liberdade que ecoava na década de 1960 dentro da Guerra Fria que estava em franca atividade e a consequente identificação dos movimentos socialistas com herói Spartacus.


Já o general Maximus Décimus Meridius é um personagem fictício, interpretado por Russell Crowe, como o mais destacado militar do reinado de Marco Aurélio (ficou conhecido como o “imperador filósofo” em virtude do gosto que tinha pelos estudos e pela esmerada formação, sendo autor de um conjunto de pensamentos escritos em grego e influenciado pelo estoicismo) que governou entre 161 e 180 d.C., representando o auge do Império Romano e assim, dominava da atual Grã-Bretanha até o norte da África, de Portugal ao Iraque, significando controlar cerca de um quarto da humanidade.

Num caminho distinto de Kubrick, Ridley Scott construiu uma narrativa fictícia com personagens reais ou não, conduzindo o espectador por um ciclo de ações que unem a primeira cena do heroi com seu último momento. Marco Aurélio nunca pensou em transformar Roma novamente numa República e muito menos foi assassinado por seu filho Cômodo, tal qual aparece no filme. Marco Aurélio morreu de tifo, legando o Império a Cômodo, o qual condizia com a representação de Joaquin Phoenix, mostrando um imperador cruel, completamente instável e sem escrúpulos ou mesmo virtudes, que costumava descer às arenas para cumprimentar os gladiadores, cujo final foi a morte decorrente de uma conspiração, levando Roma para o início de uma longa crise militar que colaborou para a destruição do Império.

Scott conseguiu com os requintes técnicos recuperar a força do espetáculo, usando os efeitos especiais para reconstruir o esplendor das arenas, especialmente o Coliseu, que na fala do fictício senador Gracus: “Roma é a plebe! O coração pulsante de Roma não é o mármore do Senado, mas sim a areia do Coliseu”. A primeira frase aparece em Spartacus, mas ganha uma dimensão própria na descrição da política do Panis et circensis, ou seja, o Pão e Circo oferecidos à plebe, que controlada e manipulada, que assim abria caminho para que a política fosse conduzida pela elite patrícia, mas é importante lembrar que tal circunstância já era bem comum à época de Spartacus.

O gosto pelo sangue derramado dos inimigos e escravos nas areias, acompanhado dos gritos em êxtase da multidão aproximam a Antiguidade dos tempos atuais, guardadas as devidas proporções, pois os espetáculos de massa ainda tem um grande apelo entre a população ocidental ou entre aqueles que convivem com o “modo ocidental” de viver numa visão mais “globalizada” : a sociedade de consumo, de massa e de espetáculo.

Mas diferentemente do mundo antigo, hoje já não há morte ou sangue abundante e os espetáculos e o pão são pagos, diga-se de passagem, bem caro e ainda assim, conseguem seduzir milhões que projetam nesses “novos herois ou pseudo-herois” da atualidade seus desejos e vontades, tudo delimitado de maneira muito clara pelos índices de audiência, os quais geram pesados patrocínios e infinitos dividendos aos investidores. Como então, não deixar de relacionar o tema do “pão e circo” com as manipulações realizadas junto a eventos como o carnaval e o futebol no Brasil? Ou ainda, na exibição de intermináveis modalidades de “reality shows” por diferentes emissoras brasileiras, buscando atrelar o espectador a uma eterna dependência que envolve interação (por telefone ou pela internet), venda de conteúdo exclusivo ou o vasto negócio dos patrocinadores que anunciam durante o programa, atrelando suas marcas ao “produto” vendido?

Andy Warhol - uma das estrelas da Pop Art

Encerro este tópico com uma reflexão sobre a fala do general Maximus, elevando o moral de suas tropas antes de enfrentar os resistentes germânicos: “Aquilo que fazemos em vida ecoa na Eternidade”.
Este ideal que os antigos buscavam não pode ser visto como mero desejo de fama, mas sim um sentimento de poder que faria daquele que fosse consagrado pela glória um “imortal”, isto é, seu nome memorizado ao longo dos séculos, mas em nosso tempo cabe a pergunta: a glória é alcançada por mérito, como uma consequência e reconhecimento ou glória por si só? Numa posição mais afinada com nossa época, o artista plástico estadunidense Andy Warhol (1931-1987) profetizou a busca pelos holofotes se resumiria a “15 minutos de fama”, portanto, cada época e cultura vêem a notoriedade de um modo diferente, dentro de seus conceitos e valores, mas infelizmente, em nossos tempos, os valores que falam mais alto são os financeiros...
Ave Spartacus! Ave Warhol!

quarta-feira, 1 de maio de 2013

O Trabalho, segundo Tarsila do Amaral

"Operários" Tarsila do Amaral, 1933. Palácio de verão do Governo de São Paulo, Campos de Jordão.

A condição humana, especialmente a do trabalhador, entrou como tema para a História da Arte com o pintor realista Gustave Courbet na França do século XIX.

Tarsila que era filha de cafeicultores e vinha de uma família rica da região de Capivari, estudara pintura  na Europa com os vanguardistas, como Fernand Léger em Paris, estava naquele contexto envolvida com o "aristocrata libertário", membro do Partido Comunista Brasileiro, Oswald de Andrade e dele recebera as influências do pensamento social crítico e do socialismo, trazendo para sua obra a temática social com muita força.

Nesta tela, uma pilha de rostos, cujas origens e características eram diversas, mostravam a cara migrante e imigrante da metrópole paulistana. Uma pilha de pessoas construída numa linha diagonal da esquerda para a direita, que vai crescendo e crescendo, ocupando a tela, em contraste com as chaminés que marcam o canto oposto e que naquele contexto, era o ícone do "desenvolvimento e progresso", cuspindo fumaça e fuligem no ar.

Esta pilha de pessoas, evoca uma saída de fábrica, quando um turno de centenas de trabalhadores estava saindo, depois de sua jornada, voltando para suas casas, tendo a fadiga carregada em seus distintos semblantes. Uma pilha de gente que se assemelha a uma pilha de mercadorias por eles produzidas, que nos estoques, aguardavam a distribuição e venda.

Muitas gentes, de todos os cantos, línguas e credos, que vendiam a sua força de trabalho para sustentarem suas famílias. Alguns descendentes de escravos, outros de caboclos ou de diferentes forasteiros que vieram "fazer a América". Proletários ocupantes dos bairros operários da Móoca, Ipiranga, Brás que aos poucos formavam um amplo exército, responsável pelo acúmulo de capital de algumas pouquíssimas famílias que viviam em resplandescentes palacetes como os Matarazzo, os Crespi, os Buonfiglioli, os Jafet (imigrantes que prosperaram) ou famílias que já eram da elite paulistana desde a colônia, como os Prado, Alcântara Machado, Ferraz de Vasconcelos, entre outros.

Tarsila nos apresenta um quadro que fala do trabalho, fala da potência do coletivo e de seu papel na sociedade, que se uma vez compreendido e valorizado, nas palavras finais do Manifesto Comunista de Karl Marx, poderiam explodir em reação: "Proletários de todo mundo, uni-vos"!