As Ricas Horas do Duque de Berry

As Ricas Horas do Duque de Berry
As Ricas Horas do Duque de Berry. Produção dos irmãos Limbourg - séc. XV. Mês de julho

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Resenha filme “Selma: uma luta pela igualdade” – Direção : Ava Du Vernay - 2014




Cronologia do processo de luta pela igualdade quanto aos direitos civis nos EUA:

Governo Dwight Eisenhower (1953-1961) - Partido Republicano

1955- Protesto de Rosa Parks contra a segregação racial no transporte coletivo em Montgomery (Capital do Alabama)
1957 - 09 Estudantes negros desobedeceram a imposição da segregação para estudar no Ginásio Central de Little Rock (capital do Arkansas); Eisenhower envia tropas federais para das garantias aos estudantes. A escola foi fechada após o final do ano letivo.

Governo John Kennedy (1961-1963) - Partido Democrata

1961 - Protesto de Grensboro (Carolina do Norte): concentração conjunta de jovens negros e brancos em lugares públicos, pedindo o fim da segregação.

1962 - Episódio James Meredith - A justiça federal autorizou James Meredith a estudar na Universidade do Mississipi, enfrentando a resistência do governador do estado e de populares. JFK foi obrigado a enviar tropas federais para garantir o acesso de Meredith, bem como a pacificação local.

1963- Marcha de Washington (agosto de 1963) liderada por Martin Luther King.

1963- Atentado à bomba na igreja Batista de Birmigham (Alabama): ponto de encontro de Martin Luther King entre outros ativistas. Ação da Ku Klux Klan em 15 de outubro de 1963: matou 4 adolescentes e feriu 20 pessoas.

Governo Lyndon Johnson (1963-1969) - Partido Democrata

1964 - Assassinato de 3 jovens defensores dos direitos civis pela Ku Klux Klan, fato que inspirou o filme “Mississipi em chamas”.

02 de julho de 1964 - Johnson sanciona a Lei dos direitos civis

O filme de Ava DuVernay tem como ponto de partida o momento em que Martin Luther King se preparava para receber o Nobel da Paz em 1964. Seu discurso de agradecimento faz menção às mortes dos negros em diferentes contextos, como foi o caso do atentado na Igreja Batista de Birmigham (Alabama).
No mesmo estado do Alabama, ilustra-se o abuso de poder no cartório de registro eleitoral, que como em outros estados segregacionistas, usavam da intimidação e abuso de autoridade para excluir os negros do processo eleitoral. 

Lyndon Johnson recebeu Martin Luther King para discutir a questão do efetivo direito ao voto, mas Johnson diz que está interessado em erradicar a pobreza no sul. Nesse caso, a realidade e a política se desencontram e como resultado, King se articulou junto ao movimento negro para a organização de uma marcha pacífica, partindo de Selma a Montgomery, a capital do Alabama, um percurso de aproximadamente 80km.
 
Aos olhos do FBI, que o vigiava muito de perto, Edgar Hoover (Diretor do FBI)avalia King como um radical que deve estar em vigilância estrita, sugerindo inclusive a possibilidade de assassiná-lo para  o presidente Lyndon Johson, que não concordada com tal possibilidade e daí, passaram a atuar na desestabilização da família de King para enfraquecê-lo.

O filme cria um eixo narrativo na figura e atuação de King, liderando o movimento negro, onde aparecem outras lideranças, como o Movimento pelo Direito ao Voto de Selma foi empreendido por afro-americanos locais que formaram a Liga de Eleitores do Condado de Dallas (DCVL, Dallas County Voters League, em inglês). Em 1963, a DCVL e organizadores de marchas do Comitê Não-Violento de Coordenação Estudantil (SNCC, de Student Nonviolent Coordinating Committee).

A repressão à concentração junto ao Tribunal de Selma foi um termômetro para a escalada da violência: por mais pacíficos e corretos que estivessem os cidadãos negros, o tratamento dado pelas autoridades sulistas foi brutal: espancamentos e prisões, como de King, James Bevel, Annie Lee, entre outros líderes.

Logo após a liberação de King e as demais lideranças, foi reprimida violentamente uma Marcha noturna em Selma por ordem do governador do Alabama, George Wallace, implicando em inúmeros feridos e na morte de um jovem Jimmie Lee Jackson.

A pressão sobre Lyndon Johnson para alterar a legislação e favorecer o direito civil dos negros vai crescendo, enquanto King recebia ameaças de morte e chantagem como ações articuladas pelo FBI.

Não é citado diretamente no filme, mas em 21 de fevereiro de 1965, ocorreu o assassinato de Malcom X (Al Hajj Malik Al-Shabazz) que aparece rapidamente num encontro com a esposa de Martin Luther King, Coreta. Malcom que ficara notório sobre suas críticas e divergências abertas às ações de King, entre outros segmentos do movimento negro, sinalizava uma tentativa de aproximação que não se concluiu em virtude de seu assassinato.

Foram três tentativas de realização da marcha:

1ª Marcha : 7 de março de 1965 “ Bloody Sunday” – repressão violenta aos 600 manifestantes: cassetetes e gás lacrimogêneo. Brancos nas laterais gritavam insultos contra os negros, exaltando os soldados e o uso da força sobre um movimento pacífico. As cenas de brutalidade, acompanhadas das músicas sulistas, reabriam uma passagem no tempo, remetendo ao passado durante a vigência da escravidão. Destaca-se ali o papel da cobertura praticada pela imprensa, jornais e TVs que conseguiram projetar em escala nacional todo aquele horror.

A comoção foi intensa e King conclamou os homens e mulheres do clero ou não, negros ou não, para se juntarem aquele movimento que tinha uma elevada justificativa moral, conseguindo assim, uma adesão de diferentes pessoas, além do movimento negro em prol da causa.

Lyndon Johnson tentou desmobilizar tanto a movimentação de King quanto a repressão do governador Wallace.


2ª Marcha: 9 de março de 1965 – soldados abriram passagem e não usaram a violência.  King parou, ajoelhou-se num momento de oração e guiou os manifestantes de volta à igreja, momentaneamente desistindo da marcha naquele dia. No entanto, dois homens brancos foram atacados por membros da Klan, sendo que o reverendo James Reeb morreu em decorrência dos ferimentos.

Dado que o governador George Wallace não colaborava para levantar os impedimentos para o registro dos cidadãos negros, Lyndon Johnson enviou um projeto de lei que acaba com os mecanismos ilegais usados para bloquear o registro dos negros.

3ª Marcha: 16 a 25 de março de 1965

Sob proteção legal e reforço de segurança do Governo Federal a Marcha aconteceu.



Em 25 de março, quinta-feira, 25,000 pessoas marcharam do campus de St. Jude para os degraus do capitólio do estado do Alabama, onde King proclamou seu discurso “How Long, Not Long” (“Quanto, Não tardará”). “Afinal o que buscamos”, King disse à multidão, “é uma sociedade em paz consigo mesma, uma sociedade que pode viver com sua consciência. ... Sei que hoje vocês questionam-se, Quanto tempo levará? Por isso vim hoje a vocês que nesta noite, por mais difícil que seja o momento, por mais frustrante a hora, que não tardará

 Após fazer o discurso, King e os manifestantes chegaram à entrada do capitólio com uma petição para o governador Wallace. Uma barreira de tropas impediram a entrada. Um dos oficiais anunciou que o governador não estava ali. Os manifestantes permaneceram irresolutamente à entrada até que um dos secretários de Wallace apareceu e pegou a petição.

O filme consegue oferecer numa linguagem acessível, sem didatismos ou percursos meramente emotivos, a complexidade de um personagem histórico como Martin Luther King e aqueles que o acompanharam, delineando claramente as tensões para a preservação do status quo sulista, as divergências no interior do movimento negro e a variedade de posições e atuações dentro outros segmentos sociais da política e religião junto à causa da igualdade civil nos EUA, que apesar das lutas ocorridas há mais de 50 anos, ainda não cessaram os problemas relacionados à ideologia racista, ao preconceito e exclusão social.


domingo, 27 de maio de 2018

Distanciamento e diferenciação: o racismo em sua manifestação

Distanciamento e diferenciação: o racismo em sua manifestação

A sociedade brasileira formada desde a colonização teve como um de seus componentes a ideia de diferenciação, afinal, quando o português invadiu este continente, tornando-o a América Portuguesa, trouxe consigo os valores da sociedade estamental, a qual se caracterizava pela posição ocupada pelo indivíduo a partir da sua condição de nascimento.
Na exploração comercial da Costa africana, ao longo do século XV, o europeu estabeleceu uma diferenciação entre ele e o africano escravizado, o qual passara a ser identificado pela cor da sua pele, como “negro”, tal qual ocorrera com os islâmicos invasores da Península Ibérica, os mouros em Portugal ou moros na Espanha, ambos uma referência pela pele mais escura que o europeu e daí surgiu o adjetivo “moreno” para a pele escura.
Ora, dessa diferenciação surgiram os termos “Nigéria” e “ Níger” , que hoje são nomes de países africanos, mas derivavam da nomenclatura aplicada pelos europeus, portanto, foi a partir dessa diferenciação que os africanos passaram a ser tratados distintamente, quer dizer, o europeu queria marcar esta distância, que no universo africano, se dava por outras formas, como pela ideia de pertencimento a uma nação ( zulu, shosa, yorubá, etc), portanto, estes não se viam nem como negros e nem como africanos.
Desde o início da colonização da América Portuguesa, os invasores se valeram da mão de obra escrava, pelo aprisionamento dos nativos, que eram chamados de “negros da terra”, quando não chamados de “bugres” ou “ selvagens”, todos termos pejorativos e de diferenciação em relação ao branco colonizador que afirmava assim, seu estatuto de superioridade e dominação.
A construção deste processo é fruto de um processo de formação de identidade: o europeu se afirmava como “branco” e apontava para o outro todos os estigmas negativos, que muitas vezes eram diretos como o verbo “denegrir”, sinônimo de sujar, manchar ou deformar algo; na forma indireta, aparecem os eufemismos “ ter o pé na cozinha” , “ter o pé na senzala” ou “ minha bisavó foi pega no laço”, todos referências ligadas à escravidão e à violência (psicológica e sexual) reinantes por praticamente quatrocentos anos.

Em culturas diversas ao mundo cristão greco-romano, a cor preta era usada em contextos específicos, mas não necessariamente ligada à uma interpretação negativa. No cristianismo, ficou marcada como cor ligada ao luto e ao sacerdócio. No entanto, a Igreja Católica se valeu da interpretação negativa para criar rótulos “magia negra”, “missa negra” aos cultos chamados de pagãos, afinal, no discurso teológico cristão, Deus está na Luz enquanto o Mal habita as Trevas. Foi comum, entre a interpretação da maldição de Cam, o filho expulso por Noé, para “justificar a escravidão”, recitando Gênesis 9:20-27 ( a marca portada por Cam e seus descendentes seria a pele escura). No entanto, ainda existem segmentos cristãos mais radicais que, em pleno século XXI, citam esta mesma passagem para mostrar a cultura e crenças africanas como erradas e demoníacas, reiterando o racismo e ignorância.

Num país como nosso, onde as marcas da escravidão são ainda visíveis e infelizmente reiteradas pelo preconceito e racismo, a relação é inevitável quando fazemos análise de discurso. Por mais que a pessoa não seja racista, ao usar um termo ou expressão de cunho racista, ela está se alinhando a isso, mesmo que indiretamente: “cabelo ruim”, “cabelo pixaim”, “fazer negrice”, “serviço de preto”, a “situação está preta”, “ovelha negra”, “nuvens negras”, entre outros tantos exemplos mostram como a fala e o modo de vida da sociedade brasileira está marcado pelo racismo.
No processo de afirmação da identidade branca, os europeus inicialmente pensavam que a mistura entre negros e brancos , por se tratar de raças diferentes, geraria descendentes estéreis, tal qual ocorre com o cruzamento da égua com o burro, originando o “muar” ou como é mais conhecido, a mula e deste pensamento incorreto e racista nasceu o termo “mulato, mulata”.

Uma decorrência deste processo é o estereótipo que se afirmou atribuído aos negros uma virilidade quase animalesca para os homens e uma sensualidade inata às mulheres, que assim, “melhor serviriam sexualmente aos homens”, o que foi reiterado pela visão senhorial na interpretação de Gilberto Freyre, no clássico “Casa-grande e senzala” de 1933.
O que fica desse processo é a naturalização da condição de inferioridade dos negros, índios e mestiços, os quais durante a escravidão realizavam trabalhos pesados e aviltantes e após a Abolição em 1888, continuaram na mesma condição, absorvidos em subempregos ou funções vistas como indignas ( limpeza, carga e descarga, construção civil, portaria, jardinagem, motoristas, babás e empregadas domésticas).

No caso das domésticas ou das diaristas (versão mais autônoma da empregada fixa), as relações mudaram pouco ou nada, com exceção dos castigos corporais, mas o assédio moral ou sexual, persiste. A separação do que a doméstica/diarista pode comer ou onde (geralmente na cozinha e longe dos patrões) ainda é vista como normal, além do fato de ser muitas vezes apresentada como “da família” em alguns contextos.
Esta diferenciação fica ainda muito mais latente quando se observa nos imóveis de classe média, a presença da “dependência de empregada” : um cubículo de no máximo 12 metros quadrados, no qual mal cabem uma cama e um armário para acomodar a pessoa e se comparado com outras partes do imóvel, o closet da suíte principal ou a despensa, são maiores que este cômodo. A mensagem é clara para entender na divisão espacial, quem são os patrões e a empregada, a qual parece estar destinada a ser só, não constituir família e ali viver até a aposentadoria, no melhor dos casos. Logo, uma situação que não deixa de ser violenta.

O desmonte da valorização da branquitude, a repressão ao racismo e ao preconceito, no intuito de alçarmos uma sociedade mais justa, portanto, menos excludente e desigual ainda é um desafio para o curto, médio e longo prazo que não pode ficar cristalizado nas estatísticas cruéis que apontam o genocídio negro como algo natural ou fruto das “más escolhas e/ou vida errada”, culpabilizando sua vítimas e negligenciando a resolução desta questão que tem um histórico de séculos.