As Ricas Horas do Duque de Berry

As Ricas Horas do Duque de Berry
As Ricas Horas do Duque de Berry. Produção dos irmãos Limbourg - séc. XV. Mês de julho

sábado, 20 de maio de 2017

Filosofia na Modernidade

Uma importante transformação ocorrida no contexto do Renascimento foi a invenção da imprensa de tipos móveis pelo alemão Johan Gutenberg, que em 1450 na sua oficina em Mongúcia começou a imprimir a Bíblia. Tal fato implicou numa maior agilidade que o método até então utilizado: a cópia manual, feita nos mosteiros e abadias pelos monges copistas, que se responsabilizavam em copiar o texto e produzir também as imagens que o acompanhavam, as iluminuras.

A divulgação e ampliação do uso da imprensa tiveram um grande impacto na sociedade ocidental, favorecendo a divulgação do conhecimento numa escala muito maior que antes, bem como tornando o livro mais acessível, muito embora ainda não houvesse uma democratização do conhecimento e cultura, algo que talvez estejamos vivenciando agora em nossa época, guardadas as devidas proporções, porque o analfabetismo e a educação de qualidade ainda travam uma batalha constante.
Durante a Idade Média, um dos principais temas defendidos pela Igreja era o geocentrismo, teoria pautada no pensamento de Cláudio Ptolomeu (100?-170?), o qual concebia a Terra como estática, tendo o Sol e os planetas girando ao seu redor.

Tal pensamento começou a ser questionado pelo astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), ao publicar, um pouco antes de morrer, o tratado De revolutionibus orbium celestium, defendendo o heliocentrismo (a Terra e os planetas giram em torno do Sol, que é estático).

Harmonia Macrocosmica Heliocentrica , Andreas Cellarius (1596-1665)
Fonte: Wikipedia

A teoria heliocêntrica foi levada adiante por Galileu Galilei (1564-1642), físico e matemático florentino, responsável pelo aprimoramento do telescópio em 1609 e também pelo furor causado quando desafiou a Igreja ao defender intensamente os estudos de Copérnico. Devido a suas ideias acabou acusado de “inimigo da fé” e foi duas vezes processado pela Inquisição. Apesar de não ter sido condenado à morte, recebeu um castigo de maior crueldade para quem vive daquilo que estuda e ensina: foi obrigado a retratar-se publicamente, renegando suas pesquisas e acabou seus dias em prisão domiciliar. Os estudos de Galileu foram importantes para os trabalhos de Johann Kepler (1571-1630), que analisou o movimento dos planetas, elaborando a teoria das órbitas elípticas, vigente até os dias de hoje. Os estudos de Galileu também colaboraram para o aprofundamento do assunto com os trabalho de Isaac Newton (1642-1727), físico inglês que consolidou a posição de seus antecessores e publicou trabalhos sobre a chamada lei de gravitação universal, conhecidas por nós hoje como leis de Newton, as quais não só explicam uma série de eventos físicos que vivenciamos, como também acabaram por confirmar o heliocentrismo.

Somente em 1992, a Igreja Católica, então chefiada pelo papa João Paulo II, perdoou Galileu, reconhecendo o valor de suas pesquisas e a gravidade do erro que a instituição cometeu com o estudioso florentino.
Na medicina destacou-se André Vesálio (1514-1564) na área da anatomia ao publicar o tratado Sobre a estrutura do corpo humano, trabalho realizado pela experiência na dissecação de cadáveres; Miguel de Servet (1511-1553), médico espanhol responsável pela descoberta da circulação do sangue ou circulação pulmonar pelas artérias; William Harvey (1578-1657) estudou medicina em Pádua, onde Vesálio fora professor e deixou um grande número de discípulos. Harvey aprimorou as pesquisas de Servet sobre o sistema circulatório e publicou em 1628 o tratado Estudos anatômicos dos movimentos do coração e do sangue dos animais, considerado uma das mais importantes obras da sua época, tendo apenas omitido a existência dos vasos capilares, pois ainda não tinha sido inventado o microscópio. A descoberta dos capilares ficou por conta dos trabalhos do médico italiano Marcelo Malpighi (1628-1694), já que o microscópio foi inventado na Holanda em 1657.

As teorias sobre o poder absoluto

O poder descentralizado da Idade Média tinha por base a hierarquia religiosa, ou seja, "a cidade dos homens é como a Jerusalém celeste, única, mas dividida em três: aqueles que rezam, aqueles que lutam e aqueles que trabalham". A Igreja Católica dava a sustentação para o poder feudal e compartilhava dele.
No pensamento absolutista, o poder continuava sendo divino, mas concentrado nas mãos do governante, o rei, que se colocava como um “escolhido ou enviado de Deus”, ungido pela Santa Igreja, desse jeito a pessoa do rei confundia-se com o próprio Estado.
Analisemos agora as principais teorias sobre o poder absolutista que regiam a relação entre o Estado e os indivíduos.

A defesa das razões de Estado: teoria defendida por Nicolau Maquiavel (1469-1527), político e escrito florentino que serviu o governo Médici em Florença, atuando como emissário e diplomata em diferentes governos da península Itálica. Entre seus escritos, temos o livro O príncipe (escrito em 1513 e publicado em 1532), um texto que remete à antiga tradição do Speculum Princeps (“Espelho do príncipe” em latim), um manual de governo cujo texto tinha por objetivo mostrar como um governante deveria exercer o poder. Na concepção de Maquiavel, o governante deveria preservá-lo a todo custo, pois acima do bem e do mal estavam as razões de Estado.

(...) Nasce daí esta questão debatida: se será melhor ser amado que temido ou vice-versa. Responderá que se desejaria ser uma e outra coisa; mas como é difícil reunir ao mesmo tempo as qualidades que dão aqueles resultados, é muito mais seguro ser temido que amado, quando se tenha que falhar numa das duas. É que os homens geralmente são ingratos, volúveis, simuladores, covardes e ambiciosos de dinheiro, e, enquanto lhes fizerem bem, todos estão contigo, oferecem-te sangue, bens, vida, filhos, como disse acima, desde que a necessidade esteja longe de ti. Mas, quando ela se avizinha, voltam-se para outra parte. E o príncipe, se confiou plenamente em palavras e não tomou outras precauções, está arruinado. Pois as amizades conquistadas por interesse, e não por grandeza e nobreza de caráter, são compradas, mas não se pode contar com elas no momento necessário. E os homens hesitam menos em ofender aos que se fazem amar do que aos que se fazem temer, porque o amor é mantido por um vínculo de obrigação, o qual devido a serem os homens pérfidos é rompido sempre que lhes aprouver, ao passo que o temor que se infunde é alimentado pelo receio de castigo, que é um sentimento que não se abandona nunca. Deve portanto o príncipe fazer-se temer de maneira que, se não se fizer amado, pelo menos evite o ódio, pois é fácil ser ao mesmo tempo temido e não odiado, o que sucederá uma vez que se abstenha de se apoderar dos bens e das mulheres de seus cidadãos e dos seus súditos, e, mesmo sendo obrigado a derramar o sangue de alguém, só poderá fazê-lo quando houver uma justificativa convincente e causa manifesta. Deve, sobretudo, abster-se de aproveitar dos bens dos outros, porque os homens esquecem mais depressa a morte do pai do que a perda de seu patrimônio. Além disso, não faltam ocasiões para pilhar o que é dos outros, e aquele que começa a viver de rapinagem, sempre as encontra, o que não sucede quanto às ocasiões de derramar sangue.

Nicolau Maquiavel. O príncipe. Cap. XVII. Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1978.

 Alguns dos setores da Cristandade começaram a perceber que a Igreja Católica estava apresentando uma conduta muito diferente dos princípios que defendia, o que implicava no desgaste de sua imagem e também em seu enfraquecimento. Entre os principais críticos podemos citar a figura de Erasmo de Roterdã (1466-1536), um pensador católico que em sua obra de 1508, o Elogio da loucura, aponta os principais problemas da Igreja de sua época:


"(...) as armas dos papas não consistem todas naquelas doces bênçãos de que fala São Paulo e das quais são eles tão zelosos. Consistem elas em interdições, suspensões, excomunhões e naquele terribilíssimo castigo pelo qual um beatíssimo padre pode mandar à vontade qualquer alma para o inferno. Os nossos Santíssimos Pais de Cristo e os seus vigários gerais nunca empregam com maior zelo esse espantoso castigo do que no caso daqueles que, à instigação do demônio, tentam diminuir ou danificar o Patrimônio de São Pedro. Dizia este bom apóstolo a seu Mestre: 'Deixamos tudo para seguir-te'. Compreendeis que grande sacrifício fez o pobre pescador! Foi a fortuna o que ele conseguiu em virtude desta renúncia; é por isso que Sua Santidade glorificada possui terras, cidades, domínios e recebe impostos e taxas. E é sobretudo para defender e conservar essa rica aquisição que os pontífices romanos costumam condenar as almas. É verdade que nem ao menos poupam os corpos, e inflamados pelo zelo de Jesus Cristo, desfraldam a bandeira de Marte e, sem piedade, empregam o ferro e o fogo para sustentar suas razões."

As críticas recaíam sobre a Igreja em virtude do distanciamento entre o alto clero e seus fiéis, pois o luxo e ostentação da corte papal e de seus dignitários contrastava com a pobreza e privações da grande maioria de seus fiéis. Além da vida luxuosa, práticas como a simonia (venda de relíquias e cargos religiosos) e a venda de indulgências (absolvição de pecados em troca de dinheiro, terras, etc.) faziam parte do cotidiano do alto clero. Erasmo de Roterdã costumava dizer que "se todos os pedaços da cruz de Cristo, existentes na Europa, fossem reunidos hoje, nós construiríamos um navio!". 
Dessa forma, a crise moral que a Igreja Católica Romana atravessava foi o combustível para inflamar as discussões que reprovavam a conduta de grande parte do alto clero e, ao mesmo tempo, o caminho para tentar construir ou reconstruir a vida espiritual defendida na essência da doutrina cristã, fato que não excluiu a ruptura (aqueles que reclamaram foram rotulados como “protestantes” e daí temos a origem desta denominação para as novas igrejas do século XVI), muitas vezes ocasionada pelo próprio clero católico que se recusava em admitir seus erros, como bem retrata a máxima papal: “Roma locuta, causa finita”, isto é, “Roma disse, questão encerrada”.

Com a morte de Henrique VII em 1509, o trono foi ocupado por seu filho, Henrique VIII, que se casou no mesmo ano com Catarina de Aragão, princesa espanhola que lhe dera apenas uma filha (Maria Tudor), e que estava prometida em casamento ao príncipe espanhol Felipe de Habsburgo, herdeiro da Coroa espanhola.
Temendo que, após sua morte, os espanhóis se apoderariam da Inglaterra, Henrique VIII desejava o divórcio para casar-se novamente, ideia que se manifestou já em 1527, mas não se concretizou efetivamente num primeiro momento, especialmente pela pressão exercida pelo papa.
Entre aqueles que defendiam a manutenção das boas relações com Roma, estava Thomas Morus, humanista que escreveu A Utopia (publicada em 1516) e exercia a função de conselheiro do rei, posicionando-se contra a possibilidade de uma cisão religiosa e temendo uma onda de guerras na Inglaterra que poderia destruir o reino.
Um dos pontos principais de A Utopia é a preocupação com o bem comum ao qual se submete o bem individual. Para tanto, os utopianos preferem a divisão dos bens entre todos, pois acreditam que isso garantiria a abundância para todos e não a concentração de riquezas nas mãos de um grupo pequeno:

“É minha convicção firme que uma distribuição segundo critérios de equidade ou uma planificação justa das coisas humanas não é possível sem eliminar totalmente a propriedade privada. Enquanto ela subsistir, estou convencido de que há de continuar sempre a haver, entre grandíssima parte da humanidade e entre a melhor parte dela, o fardo angustiante e inelutável da pobreza e da miséria.”

Por meio da divisão do trabalho, todos trabalhariam apenas o necessário para garantir o bem geral, pois do mesmo modo que ninguém trabalharia para outra pessoa, ninguém poderia se esquivar da sua responsabilidade. Até os viajantes deveriam trabalhar antes de serem alimentados. Em caso de haver produção além da necessidade de consumo, as horas de trabalho seriam reduzidas. A esse respeito, diz Morus:

“Se todos trabalhassem, a carga horária diminui para todos. Havendo seis horas apenas para trabalhar, [...] esse tempo é suficiente para produzir bens abundantes que bastem para as necessidades e que cheguem não apenas para remediar, mas até sobrem”.

O papa Clemente VII negou o pedido de anulação do casamento de Henrique VIII, evitando a represália dos Habsburgo, já que Carlos V era sobrinho de Catarina e ambicionava não só preservar o poder que exercia pela Europa, mas também queria que a Inglaterra se colocasse sob sua órbita.
Henrique VIII decretou o Ato de Supremacia em 1534, a partir do qual se tornava o líder e protetor da Igreja na Inglaterra, liberando-se da autoridade papal e confiscando-lhe as terras que possuía na Inglaterra. Estas passaram ao controle da Igreja Anglicana, a nova instituição fundada por Henrique VIII. A situação não foi bem aceita por muitos, dentre eles, Thomas Morus, que abandonou o cargo de conselheiro real e se recusou a jurar lealdade ao novo líder espiritual do reino, fato que lhe valeu a acusação de traição, prisão e execução em 1535.


 MORUS, Thomas. A utopia. São Paulo: L&PM, 2006, pág. 47 e 57.



A renúncia da liberdade em favor da ordem: teoria do pensador inglês Thomas Hobbes (1588-1679), que presenciou todo processo de tensão política na Grã-Bretanha, assistindo a ascensão, queda e a Restauração dos Stuart (1603-49/1660-89). No turbilhão da Revolução Puritana (1642-49) e a ascensão do ditador republicano Oliver Cromwell (1649-1659), Hobbes ainda escreveu O Leviatã, em 1651, obra que defende o estabelecimento de um contrato social entre os súditos e o Estado, pois os primeiros abrem mão de sua liberdade em troca da segurança oferecida pelo segundo.

(...) O único caminho para erigir semelhante poder comum, capaz de defendê-los contra a invasão dos estrangeiros e contra as injúrias alheias, assegurando-lhes de tal modo que por sua própria atividade e pelos frutos da terra poderão nutrir-se a si mesmos e viver satisfeitos, é conferir todo o seu poder a um homem ou a uma assembleia de homens, todos os quais, por pluralidade de votos, possam reduzir suas vontades a uma vontade. Isto equivale a dizer: eleger um homem ou uma assembleia de homens que representem sua personalidade; e que cada um considere como próprio e se reconheça a si mesmo como autor de qualquer coisa que faça ou promova aquele que representa a sua pessoa, naquelas coisas que concernem à paz e à segurança comuns; que, além disso, submetam suas vontades cada um à vontade daquele, e seus juízos a seu juízo.(...) O titular desta pessoa1 se denomina soberano, e se diz que tem poder soberano; cada um dos que o rodeiam é seu súdito.

Thomas Hobbes. O Leviatã. Os Pensadores. São Paulo: Editora Abril, 1978.


O contrato social descrito no Leviatã se encontra diretamente ligado à ideia de representação. A essência do Estado está na pessoa do representante, que é o soberano. Quando há voluntariamente esse acordo entre os indivíduos de se submeterem a um homem, ou a uma assembleia de homens, dá-se a instituição do Estado. É a partir desse consentimento geral, motivado e preservado pela busca de segurança (por medo da morte), que derivam os direitos dos soberanos. A autoridade concedida ao representante contém em si o maior poder do Estado. O poder do representante não encontra poder maior que o que lhe foi concedido, nem mesmo na união daqueles que lhe concederam. Assim é possível em Hobbes o uso da expressão soberano representante, pois ele tudo pode.


Por tudo o que vimos até aqui podemos entender como a filosofia política é o estudo do “corpo social” e o poder soberano em Hobbes existe para impedir as consequências do estado de natureza (impedir que os homens se destruam uns aos outros), permitindo, com isso, a coexistência entre os homens. Para delegar este poder a um soberano é preciso que os indivíduos cedam uma parte de seus direitos e o transfiram a um soberano por meio de um contrato ou pacto social através do qual se institui e se organiza a sociedade civil e se evita a “guerra de todos contra todos”. Através deste pacto os indivíduos elegem um representante de seus interesses dotado de poder absoluto.

Esse contrato se torna necessário porque o homem também deseja sobreviver. Esse desejo de sobrevivência também é uma lei natural e é em nome dela que os homens estabelecem este contrato, cujo poder deve ser exercido por um soberano que pode ser uma assembleia ou parlamento, ou um rei.
Hobbes dá preferência à monarquia absolutista baseado no princípio de que o poder, para ser eficaz, deve ser exercido de forma absoluta, e não baseado nas teorias tradicionais do direito divino dos reis. Este poder absoluto é o resultado da transferência dos direitos dos indivíduos ao soberano através de um pacto social, mas esse poder absoluto só pode ser considerado legítimo enquanto assegura a paz civil e não para a realização da vontade pessoal do soberano.

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Idade Média: Idade das trevas?

Vitrais da ábside da Abadia de Saint-Denis, norte de Paris.
Créditos: Elias Feitosa


Tomando como base as aulas desta semana sobre Filosofia medieval, gostaria de discutir o conceito de Idade Média e seu entendimento como a Idade das Trevas,
Essa visão é resultado de uma leitura que valoriza a Antiguidade clássica como a “Idade de Ouro”, rica em saberes e arte e detentora de um ambiente de relativa liberdade, que primava pela valorização da razão como a melhor e mais importante característica da Humanidade.
Tal pensamento era muito presente entre os letrados que buscavam com ansiedade localizar os antigos textos que se encontravam em bibliotecas de mosteiros e abadias ou nas universidades que se tornaram o polo da produção do conhecimento no período.

O conceito foi uma construção a posteriori, isto é, feito depois, e dessa forma aqueles que a viveram não se entendiam ou se chamavam de medievais, termo que deriva de médium aevum, médium aetas , daí, medievo.

Os letrados dos séculos XV e XVI chamavam a sua época de Moderna e reconheciam nela semelhanças com o mundo antigo, criando por oposição ao passado recente a ideia de tenebrae como, por exemplo, o poeta Francesco Petrarca (1304-74). Nascia assim a visão de um período de estagnação e de vazio, que foi reafirmada por outros pensadores: Giorgio Vasari (1511-74) foi responsável por popularizar o conceito de renascitá, renascimento em italiano. Mas se renasceu deveria estar morta, esquecida nos séculos, para novamente estar presente entre os homens. E quem seria o ilustre defunto? A cultura greco-romana.

A reafirmação desse conceito era fruto da mentalidade daquele momento, que, em diferentes campos do saber e por diferentes autores, teve seus contornos e pressupostos consolidados e difundidos. O pintor Rafael Sanzio (1483-1520) se referia à arte medieval como “gótica”, isto é, dos godos, bárbaros invasores que não tinham cultura, segundo a visão romana; François Rabelais (1483-1553) tratava o período medieval como a “espessa noite gótica”, dessa forma, podemos então extrair outra informação importante: o termo gótico, usado para a produção artística entre o fim do século XII e o século XV, foi uma construção posterior e pejorativa. Portanto, seus realizadores não tinham a dimensão de que “eram góticos ou produziam arte em estilo gótico”.
Se o conceito negativo da chamada Idade Média como “Idade das Trevas” nasceu entre os séculos XIV e XVI, a ampliação dessa visão e sua difusão foram desdobramentos de outros períodos históricos tais como: o Iluminismo no século XVIII (época de intensa valorização da razão e de um questionamento dos poderes absolutos do rei e do clero); o Cientificismo do século XIX (contexto de maior ampliação do racionalismo e de valorização da ciência em detrimento da fé), que por sua vez foi contemporâneo ao Romantismo (movimento artístico responsável por tentar resgatar e redefinir o período medieval).


Cabe pensarmos uma outra questão: existiria um grande abismo separando “os mil anos medievo” e o Renascimento? Muitos defenderam que isso seria verdadeiro, tentando reafirmar os elementos negativos do medievo e uma “ruptura, quebra ou distância” com o período de grande transformação que seria o Renascimento. Neste caso, podemos destacar o trabalho de Jacob Burckhardt (1818-1897), um renomado erudito suíço nascido em Basileia que se tornou uma das principais referências para o estudo do Renascimento, tendo entre outras obras o livro A cultura do Renascimento da Itália, obra publicada em 1860 que sustenta a tese da ruptura com o período medieval.

Atualmente a abordagem é distinta, procurando observar que as transformações sofridas durante o Renascimento foram resultados de um processo de continuidade que perpassou o medievo e atingiu seu esplendor no momento seguinte, guardadas as devidas proporções. No entanto, precisamos analisar a complexidade das transformações e das permanências dentro de seu próprio contexto, facilitando a identificação daquilo que de fato foi inovação ou que já era pensado pelas gerações anteriores.

Segue abaixo uma bibliografia, bastante sintética, que pode ajudar em muito a revisão desta concepção defasada e superada sobre a Idade Média, que apesar de existirem pelo menos 40 anos de pesquisas acumuladas, ainda existem "ecos" que repetem o preconceito contra o medievo, mas devemos lembrar que esta crítica não significa apoiar os abusos e violências praticados no contexto medieval ou noutro por qualquer instituição, seja o Estado, seja Igreja.

Boas leituras e muitas reflexões !!

Bibliografia introdutória sobre a Idade Média


BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Editora Globo, 2006.

DUBY, Georges. História Artistica da Europa: A Idade Média, Vol. I e II,  Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 2002, 2ª ed.

FRANCO JUNIOR, Hilário. Idade Média: O nascimento do Ocidente, São Paulo, Editora Brasiliense, 1986.

LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. São Paulo, Editora Brasiliense, 1988.

LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, Bauru/ EDUSC; São Paulo/Imprensa Oficial do Estado, 2002.

LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. BauruEDUSC, 2002, 1ª edição.

RIBEIRO, Daniel Valle. A Igreja e o Estado na Idade Média. São Paulo: Editora Lê, 1995.

RIBEIRO, Daniel Valle. A Cristandade do Ocidente Medieval. São Paulo: Editora Atual, 1998.

VERGER, Jacques. Cultura, ensino e sociedade no Ocidente nos séculos XII-XIII. BauruEDUSC, 2001, 1ª edição.