As Ricas Horas do Duque de Berry

As Ricas Horas do Duque de Berry
As Ricas Horas do Duque de Berry. Produção dos irmãos Limbourg - séc. XV. Mês de julho

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Resenha filme “Selma: uma luta pela igualdade” – Direção : Ava Du Vernay - 2014




Cronologia do processo de luta pela igualdade quanto aos direitos civis nos EUA:

Governo Dwight Eisenhower (1953-1961) - Partido Republicano

1955- Protesto de Rosa Parks contra a segregação racial no transporte coletivo em Montgomery (Capital do Alabama)
1957 - 09 Estudantes negros desobedeceram a imposição da segregação para estudar no Ginásio Central de Little Rock (capital do Arkansas); Eisenhower envia tropas federais para das garantias aos estudantes. A escola foi fechada após o final do ano letivo.

Governo John Kennedy (1961-1963) - Partido Democrata

1961 - Protesto de Grensboro (Carolina do Norte): concentração conjunta de jovens negros e brancos em lugares públicos, pedindo o fim da segregação.

1962 - Episódio James Meredith - A justiça federal autorizou James Meredith a estudar na Universidade do Mississipi, enfrentando a resistência do governador do estado e de populares. JFK foi obrigado a enviar tropas federais para garantir o acesso de Meredith, bem como a pacificação local.

1963- Marcha de Washington (agosto de 1963) liderada por Martin Luther King.

1963- Atentado à bomba na igreja Batista de Birmigham (Alabama): ponto de encontro de Martin Luther King entre outros ativistas. Ação da Ku Klux Klan em 15 de outubro de 1963: matou 4 adolescentes e feriu 20 pessoas.

Governo Lyndon Johnson (1963-1969) - Partido Democrata

1964 - Assassinato de 3 jovens defensores dos direitos civis pela Ku Klux Klan, fato que inspirou o filme “Mississipi em chamas”.

02 de julho de 1964 - Johnson sanciona a Lei dos direitos civis

O filme de Ava DuVernay tem como ponto de partida o momento em que Martin Luther King se preparava para receber o Nobel da Paz em 1964. Seu discurso de agradecimento faz menção às mortes dos negros em diferentes contextos, como foi o caso do atentado na Igreja Batista de Birmigham (Alabama).
No mesmo estado do Alabama, ilustra-se o abuso de poder no cartório de registro eleitoral, que como em outros estados segregacionistas, usavam da intimidação e abuso de autoridade para excluir os negros do processo eleitoral. 

Lyndon Johnson recebeu Martin Luther King para discutir a questão do efetivo direito ao voto, mas Johnson diz que está interessado em erradicar a pobreza no sul. Nesse caso, a realidade e a política se desencontram e como resultado, King se articulou junto ao movimento negro para a organização de uma marcha pacífica, partindo de Selma a Montgomery, a capital do Alabama, um percurso de aproximadamente 80km.
 
Aos olhos do FBI, que o vigiava muito de perto, Edgar Hoover (Diretor do FBI)avalia King como um radical que deve estar em vigilância estrita, sugerindo inclusive a possibilidade de assassiná-lo para  o presidente Lyndon Johson, que não concordada com tal possibilidade e daí, passaram a atuar na desestabilização da família de King para enfraquecê-lo.

O filme cria um eixo narrativo na figura e atuação de King, liderando o movimento negro, onde aparecem outras lideranças, como o Movimento pelo Direito ao Voto de Selma foi empreendido por afro-americanos locais que formaram a Liga de Eleitores do Condado de Dallas (DCVL, Dallas County Voters League, em inglês). Em 1963, a DCVL e organizadores de marchas do Comitê Não-Violento de Coordenação Estudantil (SNCC, de Student Nonviolent Coordinating Committee).

A repressão à concentração junto ao Tribunal de Selma foi um termômetro para a escalada da violência: por mais pacíficos e corretos que estivessem os cidadãos negros, o tratamento dado pelas autoridades sulistas foi brutal: espancamentos e prisões, como de King, James Bevel, Annie Lee, entre outros líderes.

Logo após a liberação de King e as demais lideranças, foi reprimida violentamente uma Marcha noturna em Selma por ordem do governador do Alabama, George Wallace, implicando em inúmeros feridos e na morte de um jovem Jimmie Lee Jackson.

A pressão sobre Lyndon Johnson para alterar a legislação e favorecer o direito civil dos negros vai crescendo, enquanto King recebia ameaças de morte e chantagem como ações articuladas pelo FBI.

Não é citado diretamente no filme, mas em 21 de fevereiro de 1965, ocorreu o assassinato de Malcom X (Al Hajj Malik Al-Shabazz) que aparece rapidamente num encontro com a esposa de Martin Luther King, Coreta. Malcom que ficara notório sobre suas críticas e divergências abertas às ações de King, entre outros segmentos do movimento negro, sinalizava uma tentativa de aproximação que não se concluiu em virtude de seu assassinato.

Foram três tentativas de realização da marcha:

1ª Marcha : 7 de março de 1965 “ Bloody Sunday” – repressão violenta aos 600 manifestantes: cassetetes e gás lacrimogêneo. Brancos nas laterais gritavam insultos contra os negros, exaltando os soldados e o uso da força sobre um movimento pacífico. As cenas de brutalidade, acompanhadas das músicas sulistas, reabriam uma passagem no tempo, remetendo ao passado durante a vigência da escravidão. Destaca-se ali o papel da cobertura praticada pela imprensa, jornais e TVs que conseguiram projetar em escala nacional todo aquele horror.

A comoção foi intensa e King conclamou os homens e mulheres do clero ou não, negros ou não, para se juntarem aquele movimento que tinha uma elevada justificativa moral, conseguindo assim, uma adesão de diferentes pessoas, além do movimento negro em prol da causa.

Lyndon Johnson tentou desmobilizar tanto a movimentação de King quanto a repressão do governador Wallace.


2ª Marcha: 9 de março de 1965 – soldados abriram passagem e não usaram a violência.  King parou, ajoelhou-se num momento de oração e guiou os manifestantes de volta à igreja, momentaneamente desistindo da marcha naquele dia. No entanto, dois homens brancos foram atacados por membros da Klan, sendo que o reverendo James Reeb morreu em decorrência dos ferimentos.

Dado que o governador George Wallace não colaborava para levantar os impedimentos para o registro dos cidadãos negros, Lyndon Johnson enviou um projeto de lei que acaba com os mecanismos ilegais usados para bloquear o registro dos negros.

3ª Marcha: 16 a 25 de março de 1965

Sob proteção legal e reforço de segurança do Governo Federal a Marcha aconteceu.



Em 25 de março, quinta-feira, 25,000 pessoas marcharam do campus de St. Jude para os degraus do capitólio do estado do Alabama, onde King proclamou seu discurso “How Long, Not Long” (“Quanto, Não tardará”). “Afinal o que buscamos”, King disse à multidão, “é uma sociedade em paz consigo mesma, uma sociedade que pode viver com sua consciência. ... Sei que hoje vocês questionam-se, Quanto tempo levará? Por isso vim hoje a vocês que nesta noite, por mais difícil que seja o momento, por mais frustrante a hora, que não tardará

 Após fazer o discurso, King e os manifestantes chegaram à entrada do capitólio com uma petição para o governador Wallace. Uma barreira de tropas impediram a entrada. Um dos oficiais anunciou que o governador não estava ali. Os manifestantes permaneceram irresolutamente à entrada até que um dos secretários de Wallace apareceu e pegou a petição.

O filme consegue oferecer numa linguagem acessível, sem didatismos ou percursos meramente emotivos, a complexidade de um personagem histórico como Martin Luther King e aqueles que o acompanharam, delineando claramente as tensões para a preservação do status quo sulista, as divergências no interior do movimento negro e a variedade de posições e atuações dentro outros segmentos sociais da política e religião junto à causa da igualdade civil nos EUA, que apesar das lutas ocorridas há mais de 50 anos, ainda não cessaram os problemas relacionados à ideologia racista, ao preconceito e exclusão social.


domingo, 27 de maio de 2018

Distanciamento e diferenciação: o racismo em sua manifestação

Distanciamento e diferenciação: o racismo em sua manifestação

A sociedade brasileira formada desde a colonização teve como um de seus componentes a ideia de diferenciação, afinal, quando o português invadiu este continente, tornando-o a América Portuguesa, trouxe consigo os valores da sociedade estamental, a qual se caracterizava pela posição ocupada pelo indivíduo a partir da sua condição de nascimento.
Na exploração comercial da Costa africana, ao longo do século XV, o europeu estabeleceu uma diferenciação entre ele e o africano escravizado, o qual passara a ser identificado pela cor da sua pele, como “negro”, tal qual ocorrera com os islâmicos invasores da Península Ibérica, os mouros em Portugal ou moros na Espanha, ambos uma referência pela pele mais escura que o europeu e daí surgiu o adjetivo “moreno” para a pele escura.
Ora, dessa diferenciação surgiram os termos “Nigéria” e “ Níger” , que hoje são nomes de países africanos, mas derivavam da nomenclatura aplicada pelos europeus, portanto, foi a partir dessa diferenciação que os africanos passaram a ser tratados distintamente, quer dizer, o europeu queria marcar esta distância, que no universo africano, se dava por outras formas, como pela ideia de pertencimento a uma nação ( zulu, shosa, yorubá, etc), portanto, estes não se viam nem como negros e nem como africanos.
Desde o início da colonização da América Portuguesa, os invasores se valeram da mão de obra escrava, pelo aprisionamento dos nativos, que eram chamados de “negros da terra”, quando não chamados de “bugres” ou “ selvagens”, todos termos pejorativos e de diferenciação em relação ao branco colonizador que afirmava assim, seu estatuto de superioridade e dominação.
A construção deste processo é fruto de um processo de formação de identidade: o europeu se afirmava como “branco” e apontava para o outro todos os estigmas negativos, que muitas vezes eram diretos como o verbo “denegrir”, sinônimo de sujar, manchar ou deformar algo; na forma indireta, aparecem os eufemismos “ ter o pé na cozinha” , “ter o pé na senzala” ou “ minha bisavó foi pega no laço”, todos referências ligadas à escravidão e à violência (psicológica e sexual) reinantes por praticamente quatrocentos anos.

Em culturas diversas ao mundo cristão greco-romano, a cor preta era usada em contextos específicos, mas não necessariamente ligada à uma interpretação negativa. No cristianismo, ficou marcada como cor ligada ao luto e ao sacerdócio. No entanto, a Igreja Católica se valeu da interpretação negativa para criar rótulos “magia negra”, “missa negra” aos cultos chamados de pagãos, afinal, no discurso teológico cristão, Deus está na Luz enquanto o Mal habita as Trevas. Foi comum, entre a interpretação da maldição de Cam, o filho expulso por Noé, para “justificar a escravidão”, recitando Gênesis 9:20-27 ( a marca portada por Cam e seus descendentes seria a pele escura). No entanto, ainda existem segmentos cristãos mais radicais que, em pleno século XXI, citam esta mesma passagem para mostrar a cultura e crenças africanas como erradas e demoníacas, reiterando o racismo e ignorância.

Num país como nosso, onde as marcas da escravidão são ainda visíveis e infelizmente reiteradas pelo preconceito e racismo, a relação é inevitável quando fazemos análise de discurso. Por mais que a pessoa não seja racista, ao usar um termo ou expressão de cunho racista, ela está se alinhando a isso, mesmo que indiretamente: “cabelo ruim”, “cabelo pixaim”, “fazer negrice”, “serviço de preto”, a “situação está preta”, “ovelha negra”, “nuvens negras”, entre outros tantos exemplos mostram como a fala e o modo de vida da sociedade brasileira está marcado pelo racismo.
No processo de afirmação da identidade branca, os europeus inicialmente pensavam que a mistura entre negros e brancos , por se tratar de raças diferentes, geraria descendentes estéreis, tal qual ocorre com o cruzamento da égua com o burro, originando o “muar” ou como é mais conhecido, a mula e deste pensamento incorreto e racista nasceu o termo “mulato, mulata”.

Uma decorrência deste processo é o estereótipo que se afirmou atribuído aos negros uma virilidade quase animalesca para os homens e uma sensualidade inata às mulheres, que assim, “melhor serviriam sexualmente aos homens”, o que foi reiterado pela visão senhorial na interpretação de Gilberto Freyre, no clássico “Casa-grande e senzala” de 1933.
O que fica desse processo é a naturalização da condição de inferioridade dos negros, índios e mestiços, os quais durante a escravidão realizavam trabalhos pesados e aviltantes e após a Abolição em 1888, continuaram na mesma condição, absorvidos em subempregos ou funções vistas como indignas ( limpeza, carga e descarga, construção civil, portaria, jardinagem, motoristas, babás e empregadas domésticas).

No caso das domésticas ou das diaristas (versão mais autônoma da empregada fixa), as relações mudaram pouco ou nada, com exceção dos castigos corporais, mas o assédio moral ou sexual, persiste. A separação do que a doméstica/diarista pode comer ou onde (geralmente na cozinha e longe dos patrões) ainda é vista como normal, além do fato de ser muitas vezes apresentada como “da família” em alguns contextos.
Esta diferenciação fica ainda muito mais latente quando se observa nos imóveis de classe média, a presença da “dependência de empregada” : um cubículo de no máximo 12 metros quadrados, no qual mal cabem uma cama e um armário para acomodar a pessoa e se comparado com outras partes do imóvel, o closet da suíte principal ou a despensa, são maiores que este cômodo. A mensagem é clara para entender na divisão espacial, quem são os patrões e a empregada, a qual parece estar destinada a ser só, não constituir família e ali viver até a aposentadoria, no melhor dos casos. Logo, uma situação que não deixa de ser violenta.

O desmonte da valorização da branquitude, a repressão ao racismo e ao preconceito, no intuito de alçarmos uma sociedade mais justa, portanto, menos excludente e desigual ainda é um desafio para o curto, médio e longo prazo que não pode ficar cristalizado nas estatísticas cruéis que apontam o genocídio negro como algo natural ou fruto das “más escolhas e/ou vida errada”, culpabilizando sua vítimas e negligenciando a resolução desta questão que tem um histórico de séculos.

terça-feira, 31 de outubro de 2017

500 anos de um gesto de ousadia pela Fé: Lutero enfrentava a hipocrisia


Retrato de Martinho Lutero, Lucas Cranach, o Velho. Datado de 1529, Hessisches Landesmuseum Darmstadt, Darmstadt, Alemanha.

Martinho Lutero, (1483-1546) um monge da ordem de Santo Agostinho, doutor de teologia pela Universidade de Wittenberg, onde se tornou professor de teologia bíblica, cargo que exerceu até o fim da vida. Através de seus estudos pode constatar a incoerência praticada pela Igreja Católica ao colocar as “boas obras” em posição de maior importância que a fé.

No ano de 1517, Lutero fixou na porta da igreja do castelo de Wittenberg, seu polêmico texto As 95 teses contra a Igreja, no intuito de chamar a atenção para os inúmeros erros que a Igreja e seus dirigentes estavam cometendo. Mas ao invés de abrir um espaço para o diálogo, as autoridades clericais tentaram impor a retratação imediata de Lutero, o qual negou terminantemente. Afinal, Lutero não se considerava errado, mas sim preocupado com os erros de outros membros do clero.

A recusa da retratação acabou por se transformar numa atitude perigosa, implicando no enfrentamento direto da Igreja Católica e da autoridade do imperador. Em 1520, Lutero foi excomungado pelo papa Leão X (oriundo da poderosa família Médici, e cujo pai, Lourenço Magnífico, havia lhe comprado o título de cardeal aos 13 anos de idade) e queimou publicamente a Bula Papal que continha sua excomunhão. Perseguido pelo imperador e pelo papa, ficou escondido sob a proteção do príncipe da Saxônia e nesse período realizou a tradução do Novo Testamento para o alemão.

Tomando por base Santo Agostinho, Lutero construiu uma doutrina própria, mantendo apenas dois sacramentos (o batismo e a eucaristia), defendeu o uso do alemão nos cultos, a livre interpretação da Bíblia e contestava a transubstanciação (a transformação do pão e vinho em corpo e sangue de Cristo durante a eucaristia) defendendo a consubstanciação (o pão e vinho seriam aceitos simbolicamente, sem mudança de matéria), e nesse momento, Cristo se faria presente, recebendo aquelas oferendas.
O interesse da nobreza em apoiar Lutero era quebrar o domínio da Igreja no seio do Império, já que esta detinha cerca de 30% das terras e, assim, a ruptura com Roma poderia representar o desrespeito à autoridade papal e imperial, favorecendo o confisco de bens e terras da Igreja Católica pela nobreza, fato que esclarece a adesão rápida de parte dos nobres ao pensamento de Lutero.

As ideias luteranas também tomaram corpo entre os camponeses, fomentando várias revoltas camponesas no Sacro Império e impondo um estado de tensão que foi acompanhado de saques e pilhagens, bem como do massacre dos revoltosos. Lutero, no entanto, encontrava-se sob a proteção da nobreza e talvez essa condição tenha induzido seu posicionamento em favor da nobreza e favorável à repressão dos camponeses.
Por volta de 1530, um outro agostiniano, Felipe de Melanchton, expôs integralmente as ideias de Lutero na cidade de Augsburgo, o que foi denominado a Confissão de Augsburgo, doutrina renegada pela nobreza católica.

Lutero não chegou a ver o término da crise religiosa, porque a solução para a questão só ocorreu em 1555 com um acordo entre luteranos e católicos, a Concordata de Augsburgo, na qual se estabeleceu o princípio "cujus regio, ejus religio", ou seja, "tal príncipe, tal religião". Dessa maneira os príncipes escolhiam a religião a ser adotada em suas terras e a população deveria acatar.
O luteranismo teve uma maior aceitação na região norte da Alemanha, enquanto o sul permaneceu católico em sua maioria, mas também chegou a outros países como Suécia, Dinamarca e Noruega. Com a emigração para o continente americano, o luteranismo chegou ao Novo Mundo, especialmente na América do Norte. Posteriormente, já no século XIX, atingiu outras regiões do planeta, seja pela imigração, seja pelo missionarismo religioso.


Lutero não poderia imaginar o impacto de seu gesto ao longo tempo, provocando a abertura de um processo que levaria a novas formas de vivência do cristianismo, moldando sociedades e pensamentos: o cristianismo da Reforma. Ao mesmo tempo, ficaria assustado, no século XXI, com os abusos praticados por uma fração dos segmentos do cristianismo quanto às relações espúrias com o poder político e econômico, inclusive, contrariando uma de suas ideias, a defesa do Estado laico.

Sugestão do Gabinete:

Lutero. Direção: Eric Till, 2003. Apesar de ser patrocinado pelo clero luterano, o filme apresenta uma síntese sobre a biografia de Lutero e suas ações que acabaram por desencadear uma nova cisão na Igreja Católica no século XVI.



quarta-feira, 23 de agosto de 2017

O Renascimento



O conceito de Renascimento vem da palavra italiana renascitá, pois se acreditava que o período anterior, a Idade Média, fora uma "espessa e longa noite gótica" imersa nas trevas e desprovida de cultura. Para os homens deste período, a "verdadeira" cultura encontrava-se na Antigüidade, a qual foi banida e em seu lugar a Igreja estabeleceu o teocentrismo. O saber, portanto, encontrava-se nas artes e nos escritos clássicos.
Dessa forma, os artistas e intelectuais buscavam uma concepção de cultura diferente da medieval e que tinha suas raízes no mundo greco-romano. A proposta central era afastar-se do teocentrismo, buscando o antropocentrismo, ou seja, o homem como medida de todas as coisas.
Ao pensarmos o conceito de Renascimento, a questão mais importante é pensa-lo como uma releitura de um pensamento que aparentemente teria desaparecido e seria recuperado pelos estudiosos. Tal idéia tinha força, porque os homens da época entendiam por arte os modelos da cultura clássica, os quais desapareceram durante o medievo e portanto precisavam ser recuperados, segundo Giorgio Vasari (1511-1574) e Leon Battista Alberti (1404-1472), ambos artistas renascentistas e importantes personagens na criação dos conceitos renascimento e homem universal (l’uomo universale), respectivamente.
Apesar desta repulsa à Idade Média, é importante perceber que as transformações sofridas durante o Renascimento foram resultados de um processo de continuidade que perpassou o medievo e atingiu seu esplendor no momento seguinte, portanto, não se pode considerar a Renascença como uma ruptura total, mas a mudança de largo processo de experimentação e aprimoramento. 
A partir da reabertura do Mediterrâneo após as Cruzadas, a Europa assistiu uma intensa transformação das relações sociais e do modo de vida, pois as cidades voltaram a crescer e se tornaram o centro das atividades comerciais através da atuação dos burgueses. A burguesia era um grupo oriundo da ordem dos trabalhadores e portanto, não possuía a legitimidade como a nobreza ou o clero, os quais controlavam a vida dos demais .
No que diz respeito a prosperidade italiana, esta era relacionada com o monopólio do comércio de especiarias com o Oriente, tendo se destacado as cidades de Gênova, Veneza, Florença e Pisa. Estas cidades controlavam a venda de especiarias dentro da Europa e também a sua compra com os árabes e turcos no Mediterrâneo.




ITÁLIA: O "BERÇO DO RENASCIMENTO"

O Renascimento tem como seu "berço" a Península Itálica devido a um conjunto de fatores que favoreceram sua formação. Em primeiro lugar, o fato de ter sido o centro do Império Romano e guardar milhares de ruínas e resquícios da cultura greco-romana, como templos, estátuas, prédios públicos e dessa forma, os italianos tinham uma convivência muito próxima com seu "glorioso passado". Em segundo lugar, o enriquecimento proveniente do comércio mediterrânico que permitiu aos burgueses o investimento nas artes, sendo denominados mecenas, com o objetivo de legitimar sua posição na sociedade e buscar uma visão de mundo que se relacionasse com seu modo de vida, rompendo portanto, coma visão de mundo medieval, na qual eram simples trabalhadores inferiorizados pela nobreza e clero. O mecenato, no entanto, não ficou restrito aos burgueses, pois nobres, papas e príncipes também o fizeram.
Um fator muito importante foi a sobrevivência de muitos textos clássicos através da sua conservação em bibliotecas de mosteiros e abadias que foram copiados e traduzidos por monges copistas, do intercâmbio entre sábios bizantinos e também pela ação dos árabes na tradução e divulgação de vários textos, como por exemplo o estudo de Aristóteles realizado por Ibn Rushd (chamado no Ocidente de Averróes) em Córdova durante o domínio árabe do sul da penísnsula Ibérica.
A sobrevivência dos elementos da cultura clássica pode ser relacionado com sua redescoberta a partir do interesse dos intelectuais pelos studia humanitatis (estudos humanos que incluíam filosofia, poesia, história, matemática , eloquência e o perfeito domínio do latim e do grego) , pois não se buscou a mera repetição dos modelos antigos, mas sua reinterpretação à luz de sua época e dessa forma constituiu-se o humanismo
Neste contexto, destaca-se a obra de Dante Alighieri (1265-1321) A Divina Comédia, poema épico composto por três partes (Purgatório, Inferno e Paraíso), escrito em tercetos com versos decassílabos, totalizando 100 cantos e totalmente escrito em dialeto toscano, o qual futuramente daria origem a língua italiana. Apesar de inovadora, a Divina Comédia ainda trazia vários elementos da cultura e visão de mundo medieval, representados pela hierarquia, linearidade e imobilidade, tendo porém, uma perspectiva que ressalta o valor humano, pois a passagem de Dante pelo Inferno e pelo Purgatório não deturpa seu caráter, ao contrário, reafirma-o.
           

O QUE LEVOU AO RENASCIMENTO
           
Uma série de fatores proporcionou a ocorrência do Renascimento a partir da Baixa Idade Média. Inicialmente, houve o renascimento comercial, isto é, a generalização do comércio pela Europa, fenômeno que se tornou irreversível desde a abertura do Mediterrâneo. Isso tudo foi acompanhado pelo renascimento urbano, que implicou o surgimento de novas cidades e uma série de funções para elas; a cultura renascentista foi essencialmente urbana.
Ocorreu também o surgimento e a ascensão dos mercadores, ligados principalmente ao comércio marítimo. Para que isso acontecesse, foi necessária a centralização do poder em algumas partes da Europa, o que favoreceu a redução do poder da Igreja e das ideias que condenavam o comércio de maneira geral. Tais mercadores, enriquecidos, passaram a viver em castelos tentando igualar-se à nobreza de sangue. Passaram, então, a praticar o mecenato, ou seja, a abrigar, financiar e incentivar jovens artistas, tornando-se protetores das artes. Estes jovens artistas entraram em contato com a herança do Império Romano presente em esculturas, pinturas, obras arquitetônicas e literárias espalhadas por toda a Península Itálica.
Aos burgueses interessava duplamente financiar os artistas da época, pois, ao mesmo tempo em que ascendiam socialmente dentro da Itália, divulgavam seus nomes e sua grandeza até mesmo nos países distantes.

O RENASCIMENTO E O CONTEXTO HISTÓRICO

"A Península Itálica em 1494" Fonte: Wikipédia


Durante a Baixa Idade Média ocorreu o renascimento comercial e urbano, o qual favoreceu em especial algumas regiões da Europa como a Flandres (região que hoje compreende Bélgica e Holanda) e o norte da Itália em virtude da intensa atividade comercial. Neste momento , começou o fortalecimento do poder monárquico em detrimento da nobreza, mas tanto na Itália não se formou uma monarquia nacional centralizada, uma vez que constituíam regiões dominadas por pequenos Estados sob o controle da burguesia (as Repúblicas de Florença,Gênova, Lucca, Siena e Veneza);da nobreza (os Ducados de Milão, Módena, Ferrara, Savóia) e da Igreja (região central da Itália). A região de Flandres era uma possessão dos Duques de Borgonha (passando no final do século XV para o domínio dos Habsburgo) e era dotada também de intensa atividade comercial, tendo porém uma burguesia desinteressada em nobilitar-se como era o caso da italiana, valorizando portanto, sua posição de mercadores e comerciantes.
O enriquecimento das cidades italianas fez com que as famílias burguesas que controlassem o governo das comunas a partir do podestá (líder político) que tinha sob seu controle um exército de mercenários liderados pelo condottieri (chefe de armas ou capitão de guerra). Em Veneza , porém, havia a figura do doge (chefe da República) apoiado pelo Senado e pelo temível Conselho dos Dez (órgão sigiloso, com poderes de vida e morte sobre os cidadãos, composto por membros da aristocracia veneziana).
Destacaram-se como importantes membros da burguesia italiana os Médici em Florença, os Baglioni em Perúgia e os Bentivoglio em Bolonha; em algumas cidades os próprios condottieri controlavam o poder como os Sforza em Milão.



A ESTÉTICA RENASCENTISTA

A estética renascentista propôs o retorno aos valores clássicos: arte mimética (a imitação da realidade com o objetivo de buscar a perfeição, segundo Aristóteles, forjando a idéia de respeitar o modelo adotado e dentro dele a busca da superação, com o auxílio da criatividade); a harmonia, a sobriedade (contenção dos sentimentos) e além desta recuperação da Antigüidade, o tema central foi o antropocentrismo (o homem como medida de todas as coisas) em detrimento do teocentrismo, favorecendo o surgimento de uma forma de cultura laica (não religiosa), a qual valorizava o individualismo. 
Quanto à temática, não foram abandonados os temas religiosos, como a vida de santos e as passagens da Bíblia, pois o que ocorreu neste período é a representação mais humanizada da divindade. Outro tema muito recorrente foi a mitologia greco-romana, pois os mitos foram resgatados e ganharam uma roupagem adequada ao gosto burguês.
A produção artística do Renascimento pode ser vista como a construção do imaginário burguês, pois a burguesia buscava a legitimidade e auto-afirmação, querendo romper com a Idade Média e assim livrar do estigma da servidão, afinal, os burgueses saíram deste estamento para depois morar nos burgos e viver do comércio.

AS INOVAÇÕES TÉCNICAS

Durante o Renascimento surgem inúmeras inovações nas artes plásticas: a perspectiva (a representação dos objetos, lidando com os conceitos de  espaço e volume, enfocados a partir de um pondo de vista (ponto de fuga), o que permitiu ampliar o espaço, trabalhando a profundidade e no entanto, delimita o olhar do observador ao ponto estabelecido pelo pintor , também chamado de "técnica do ponto fixo" . Um dos primeiros a utilizar esta técnica foi Giotto e posteriormente, Brunelleschi estabelece uma relação matemática proporcional na representação das imagens, também chamada de perspectiva geométrica; a pintura a óleo, importada da Flandres que foi difundida ao longo do Quattrocento , permitiu o trabalho mais detalhista por parte do artista, possibilitando-lhe o aprimoramento da técnica.


FASES DO RENASCIMENTO ITALIANO


Trecento (1300-1399): É a fase de transição entre a estética medieval e a renascentista. Destacam-se neste período os pintores: Giotto (afrescos da Basílica de Assis), Duccio, Cimabue, Simone Martini e Ambrogio Lorenzetti. Na literatura temos como autores importantes Francesco Petrarca (1304-1374), autor de Odes a Laura e da epopéia De África e Giovanni Boccaccio (1313-1375), autor de Decameron. A riqueza da produção literária deste período estava na utilização dos dialetos, o toscano principalmente, colaborando para a formação da língua italiana.


Duccio di Buoninsegna 1308-11 Museo dell'Opera Metropolitano del Duomo, Siena - Itália - Fonte: Wikipédia


Simone Martini e Lippo Memmi, c.1333 Galleria degli Ufizzi, Florença - Itália. Fonte: Wikipédia



Giotto de Bondone, c.1304 Cappella degli Scrovegni all'Arena, Padua - Itália. Fonte: Wikipédia




Quattrocento (1400-1499): Nesta fase houver um maior desenvolvimento das artes plásticas que na literatura, pois os escritores voltaram a apenas imitar a Antigüidade e assim não continuaram a escrever nos dialetos e dessa forma usavam o grego e o latim. O centro da produção renascentista é Florença. Na pintura encontramos o destaque de Masaccio (1401-1428), autor de A Trindade, Virgem e o Menino com os anjos; Sandro Botticelli( 1447-1510), autor de O nascimento de Vênus, A alegoria da Primavera entre outras; Fra Angelico, autor da Anunciação, Cenas da vida de S. Estevão.
Um dos grandes nomes do Quattrocento é Leonardo da Vinci (1452-1519), homem de múltiplas habilidades: pintor, arquiteto, inventor, matemático e filósofo, portanto, o exemplo de "homem universal". De sua vasta obra destacam-se: A virgem dos rochedos, La Gioconda (Mona Lisa), projetos arquitetônicos, tratados de anatomia, pintura e vários inventos. Leonardo representa a transição do Quattrocento para o Cinquecento.

Masaccio, Igreja de Santa Maria Novella, c.1426-28, Florença - Itália. Fonte: Wikipédia


Fra Angelico, 1438, Museo de San Marco, Florença - Itália. Fonte: Wikipédia


Piero della Francesca, c.1472, Pinacoteca di Brera, Milão - Itália.Fonte: Wikipédia




Sandro Botticelli, c. 1487, Galleria degli Ufizzi, Florença - Itália. Fonte: Wikipédia


Leonardo Da Vinci, c. 1483-86, Museu do Louvre, Paris - França.Fonte: Wikipédia


Leonardo Da Vinci, c.1495-98, Convento de Santa Maria delle Grazie, Milão - Itália.Fonte: Wikipédia



Michelangelo Buonarotti, c.1498-99. Basílica de São Pedro, Vaticano. Fonte: Wikipédia




Cinquecento (1500-1550): Nesta fase a capital do Renascimento passa a ser a Roma papal, graças ao mecenato de papas como Alexandre VI, Júlio II e Leão X e. Na literatura, ainda em Florença, destaca-se a publicação de "O Príncipe" , de Nicolau Maquiavel ; de Baltazar Castiglione, "O Cortesão"; de Ariosto, "Orlando Furioso". Nas artes plásticas destacam-se Rafael Sanzio, pintor famoso por suas Madonas, A Escola de Atenas e Michelangelo Buonarroti, autor das esculturas: David, Pietá, Moisés; da planta da cúpula da Basílica de São Pedro e dos afrescos da Capela Sistina.


Michelangelo Buonarotti, c.1501-1504, Galleria dell'Accademia, Florença - Itália. Fonte: Wikipédia


Leonardo da Vinci, c.1503-06, Museu do Louvre, Paris - França. Fonte: Wikipédia


Michelangelo Buonarotti, c.1508-10, Capella Sistina, Vaticano. Fonte: Wikipédia



Rafael Sanzio, c.1510-11, Vaticano. Fonte: Wikipédia

Rafael Sanzio, c. 1512, Gemäldegalerie Alter Meister, Dresden - Alemanha. Fonte: Wikipédia


O RENASCIMENTO ALÉM DA ITÁLIA

O Renascimento teve como centro a Península Itálica e gradativamente se espalhou para o restante da Europa. Depois da Itália, o centro mais importante foi a região de Flandres, pois também foi uma região de forte atividade comercial dotada de uma burguesia com grande dinamismo. Na literatura destacou-se Erasmo de Roterdam, autor de "O Elogio da Loucura".
Na pintura, temos Jan Van Eick com o quadro "O casal Arnolfini"; Hieronymus Bosch, autor de "O jardim das delícias", "A pedra da Loucura", O trinfo da Morte"; Pieter Brueghel, autor de "O massacre do Inocentes", "Torre de Babel", "A morte de Ícaro"; Rogier van der Weyden, autor de "A deposição da Cruz".
Em outros países o Renascimento foi tardio em relação à Itália, tendo menor expressão: Portugal recebeu influências com o retorno de Sá de Miranda da Itália em 1527, trazendo o dolce stil nuovo (verso decassílabo e soneto) e mais tardiamente com Luís Vaz de Camões graças à publicação de "Os Lusíadas" em 1572; na Espanha o maior expoente foi Miguel de Cervantes com sua obra "D. Quixote de la Mancha"; na França, o principal nome é François Rabelais, autor de "Gargântua e Pantagruel"; na Grã-Bretanha , destacaram-se William Shakespeare, dramaturgo, autor de "Romeu e Julieta", "Macbeth", "Hamlet", "Rei Lear" entre outras peças e Thomas Morus com "Utopia".



Jan Van Eyck, c.1434, National Gallery, Londres - Reino Unido. Fonte: Wikipédia


Rogier van der Weyden, c.1435, Museo del Prado, Madrid - Espanha. Fonte: Wikipédia


Hieronymus Bosch, c. 1500, Museo del Prado, Madrid - Espanha. Fonte: Wikipédia


Albrecht Dürer, c. 1500, Alte Pinakothek, Munique - Alemanha. Fonte: Wikipédia




Mathias Grünewald, c.1512-16, Musée d'Unterlinden, Colmar - França. Fonte: Wikipédia



Pieter Bruegel, o Velho, c.1562, Museo del Prado, Madrid - Espanha.Fonte: Wikipédia



O Renascimento e as Ciências

Durante a Idade Média, um dos principais temas defendidos pela Igreja era o geocentrismo, ou seja, a Terra era estática e os planetas giravam ao seu redor. Tal pensamento começou a ser questionado pelo astrônomo polonês Nicolau Copérnico(1473-1543), defensor do Heliocentrismo (a Terra e os planetas giram em torno do Sol que é estático). Esta teoria foi levada adiante por Galileu Galilei(1564-1642), físico florentino, o qual desafiou a Igreja defendendo tal tese e foi obrigado a retratar-se publicamente. Mais tarde os estudos de Johannes Kepler (1571-1630) acabaram por confirmar o heliocentrismo.
Na medicina destacaram-se Andrea Vesalius (1514-1564) na área da anatomia; Miguel de Servet (1511-1553), médico espanhol responsável pela descoberta da circulação do sangue  ou circulação pulmonar  pelas artérias.




Frontispício de De Humani Corporis Fabrica, c.1543. Fonte: Wikipédia



Imagem da página 178 de De Humani Corporis Fabrica, c.1543. Fonte: Wikipédia


Apresentamos uma série de transformações culturais, políticas e socioeconômicas que envolveram o período dos séculos XIV ao XVI, sendo muito mais pertinente a compreensão do Renascimento como um processo histórico do que  enfatizar a memorização automática de artistas e obras.

Destacamos como ponto central a mudança de paradigma (modelo) que a Europa ocidental passou: a Igreja e o clero perderam não só o monopólio sobre o conhecimento, mas também deixaram de ser a única fonte de explicação para todas as coisas, já que o questionamento, observação, investigação e análise dos dados ali coletados formaram um caminho (método) para levantar hipóteses e teorias sobre a explicação dos fenômenos que envolvem o homem e o Universo.

Ao tirar o foco da exclusiva orientação divina (teocentrismo) e aponta-lo em direção ao homem (antropocentrismo), o Renascimento abriu caminho para a construção do mundo que chamamos de moderno e criou um espaço de tensão aos segmentos dominantes, obrigando-os a reagir com força para não perderem mais espaço do que já tinha ocorrido, porém, foi um caminho sem volta, apesar de toda repressão aplicada. Mas isto já é assunto para um outra postagem!