Série "Los caprichos" - "O sono da razão produz monstros" 1797-99
Museo del Prado - Madrid, Espanha.
O homem saiu de sua menoridade ? Com esta pergunta, acompanhada de um texto de orientação e de um excerto de Immanuel Kant, o vestibular da Fuvest colocava as diretrizes para a sua redação. Pode ser que para alguns o tema fosse estranho ou distante da realidade do estudante do Ensino Médio no Brasil, porém, o caminho é outro.
O desenvolvimento da proposta presumia duas situações: a compreensão da relação que Kant estava ali fazendo entre os conceitos de menoridade e maioridade, cruzando-os com o contexto da produção, da sociedade e da visão de mundo que Kant apresentava.
Aufklärung é a palavra alemã usada por Kant para definir o "Esclarecimento" que pode também ser conhecido como "Ilustração" ou "Iluminismo" e daí a importância atribuída ao uso da Razão e quanto esta poderia transformar o modo de pensar e de viver dos homens, pois segundo Kant a emancipação da ignorância, das crenças, do dogmatismo poderia tirar o ser humano desta condição de menoridade, portanto, tutelado e dependente, sem autonomia e no muito das vezes acostumado a tal situação: o indivíduo não pensa por si porque tem quem pense por ele.
Para Kant, as luzes da Razão trariam condições para a independência do ser humano, pois usando o conhecimento, refletindo conscientemente, a ruptura desse aprisionamento seria um processo sem volta.
Já estamos no século XXI, Kant escreveu este texto em 1784 e pensando neste intervalo, na trajetória humana e sua história, voltamos a pergunta inicial: saímos da menoridade?
A atualidade da questão é imensa e intensa. Apesar de todas as inovações tecnológicas acumuladas e criadas até então, do conhecimento em diferentes campos e avanços obtidos justamente porque conseguimos produzir e multiplicar conhecimento, levando em conta a proposição de Kant, infelizmente, estamos longe da maioridade.
A chamada "Era da Informação" que se desenvolveu e se consolidou com a Informática e o estabelecimento da Internet que poderia fornecer um diferencial significativo na relação do homem com o conhecimento numa escala nunca antes vista, pensando-se acesso, rapidez e circulação de informações, também é responsável pela proliferação de radicalismos, crimes, exploração e desinformação numa escala muito maior.
O mesmo impacto que a imprensa teve no Ocidente no século XV com a impressão de livros, a Internet com portais, sites e as redes sociais também foi impactante no século XXI, mas não conseguiu romper com padrões e pseudo-conceitos oriundos do senso comum, que antes não tinham grande circulação pelo custo de se editar um livro ou revista, mas o acesso que a Internet promoveu àqueles que não tinham espaço e o obtiveram é impressionante, tanto do ponto positivo, quanto do negativo.
Então a saída é acabar com a liberdade na Internet? Imposição de controle? Censura? Kant vivenciou estes problemas na Prússia, hoje na China, Cuba, Irã, Coreia do Norte, Arábia Saudita, entre outros países, pratica-se a vigilância digital, mas ainda assim, existe a resistência, tal qual época de Kant, quando os iluministas perseguidos editavam e publicavam seus livros no exterior e depois os contrabandeavam para de mão em mão, fazer-se conhecer.
Por mais que alguns desejem, a censura e limitação não são o melhor caminho!
Se pensarmos no peso e impacto que a Imprensa (jornais, rádios, TV e Internet) assumiu na sociedade contemporânea, sendo citada como o "4o. poder" manipulando dados, destruindo reputações com rapidez(as reparações são lentíssimas), criando tendências e modismos que são produtos lucrativos aos impérios da comunicação, fábricas, lojas e assim, a frase de Andy Warhol "um dia todos terão direito a 15 minutos de fama" se transformou numa realidade inquestionável. Inclusive, empresas e pessoas vivem e enriquecem a partir da sua imagem, seja na publicidade ou na exibição das redes sociais, tudo vira sinônimo para venda e lucro, de produtos à escândalos, de ensaios profissionais a "nudes acidentais", tudo é produto: gostou? Dê um like!! Compartilhe!!
A mídia, seguindo sua função primordial, "meio de circulação" tem um papel vital na sociedade contemporânea, ao informar a sociedade, porém, o impacto e força foi percebido pelos seus controladores ou por outras forças, como os grupos religiosos, financeiros, políticos e empresariais que buscam divulgar suas crenças e atrair mais adeptos, fato que coloca o papel da comunicação no centro do debate: como é possível aceitar mentiras construídas por instituições privadas ou governamentais? Como, com tanta informação, é possível ser voluntariamente vítima de estelionato religioso que prometem milagres falsos? Como a palavra de blogger, youtuber, apresentador, atriz ou celebridade tem mais força que centenas de estudos de milhares de pesquisadores?
Um outro alemão, Joseph Göbbels, ministro da propaganda do regime nazista sentenciou muito bem: "uma mentira mil vezes repetida se torna uma verdade".
Na sociedade brasileira contemporânea vivemos um contexto bizarro que se incita a uma postura anti-intelectual, desvaloriza os saberes e seus detentores, prevalecendo o senso comum e um discurso incoerente. Exemplo: o Brasil se caracteriza e assume como um país de matriz predominantemente cristã (86,8% segundo o Censo de 2010 do IBGE) e ao mesmo tempo tem 57% de sua população defendendo a tese que "bandido bom é bandido morto", segundo pesquisa do Datafolha em novembro de 2016.
Existem avanços na construção de uma visão e modo de vida que valoriza a inclusão, o combate aos preconceitos, à intolerância de diferentes tipos, mas ainda assim, certas posições e visões não se alteram: as mesmas pessoas que vão às ruas protestarem contra a corrupção nas estruturas do Governo, criticando o enriquecimento ilícito e abuso de poder, são aqueles que compram favores, fraudam e sonegam impostos, colam em provas, compram trabalhos e vagas em concursos.
Em suma, pensando na proposição de Kant e na pergunta feita pela Fuvest, ainda estamos na menoridade, eu diria recém-nascidos num berçário e o risco de nos afastarmos da Razão, do conhecimento é grande como muito bem expôs o pintor e gravador espanhol Francisco Goya(1746-1828), numa das gravuras da série "Los caprichos", que se entitula "O sono da razão produz monstros" e estes tem crescido na forma do autoritarismo, do elitismo, do preconceito, violência entre outros perigos, dessa forma, todo cuidado é pouco. Busquemos a Luz, sempre!