A sociedade brasileira formada desde a colonização teve como um de seus componentes a ideia de diferenciação, afinal, quando o português invadiu este continente, tornando-o a América Portuguesa, trouxe consigo os valores da sociedade estamental, a qual se caracterizava pela posição ocupada pelo indivíduo a partir da sua condição de nascimento.
Na exploração comercial da Costa africana, ao longo do século XV, o europeu estabeleceu uma diferenciação entre ele e o africano escravizado, o qual passara a ser identificado pela cor da sua pele, como “negro”, tal qual ocorrera com os islâmicos invasores da Península Ibérica, os mouros em Portugal ou moros na Espanha, ambos uma referência pela pele mais escura que o europeu e daí surgiu o adjetivo “moreno” para a pele escura.
Ora, dessa diferenciação surgiram os termos “Nigéria” e “ Níger” , que hoje são nomes de países africanos, mas derivavam da nomenclatura aplicada pelos europeus, portanto, foi a partir dessa diferenciação que os africanos passaram a ser tratados distintamente, quer dizer, o europeu queria marcar esta distância, que no universo africano, se dava por outras formas, como pela ideia de pertencimento a uma nação ( zulu, shosa, yorubá, etc), portanto, estes não se viam nem como negros e nem como africanos.
Desde o início da colonização da América Portuguesa, os invasores se valeram da mão de obra escrava, pelo aprisionamento dos nativos, que eram chamados de “negros da terra”, quando não chamados de “bugres” ou “ selvagens”, todos termos pejorativos e de diferenciação em relação ao branco colonizador que afirmava assim, seu estatuto de superioridade e dominação.
A construção deste processo é fruto de um processo de formação de identidade: o europeu se afirmava como “branco” e apontava para o outro todos os estigmas negativos, que muitas vezes eram diretos como o verbo “denegrir”, sinônimo de sujar, manchar ou deformar algo; na forma indireta, aparecem os eufemismos “ ter o pé na cozinha” , “ter o pé na senzala” ou “ minha bisavó foi pega no laço”, todos referências ligadas à escravidão e à violência (psicológica e sexual) reinantes por praticamente quatrocentos anos.
Em culturas diversas ao mundo cristão greco-romano, a cor preta era usada em contextos específicos, mas não necessariamente ligada à uma interpretação negativa. No cristianismo, ficou marcada como cor ligada ao luto e ao sacerdócio. No entanto, a Igreja Católica se valeu da interpretação negativa para criar rótulos “magia negra”, “missa negra” aos cultos chamados de pagãos, afinal, no discurso teológico cristão, Deus está na Luz enquanto o Mal habita as Trevas. Foi comum, entre a interpretação da maldição de Cam, o filho expulso por Noé, para “justificar a escravidão”, recitando Gênesis 9:20-27 ( a marca portada por Cam e seus descendentes seria a pele escura). No entanto, ainda existem segmentos cristãos mais radicais que, em pleno século XXI, citam esta mesma passagem para mostrar a cultura e crenças africanas como erradas e demoníacas, reiterando o racismo e ignorância.
Num país como nosso, onde as marcas da escravidão são ainda visíveis e infelizmente reiteradas pelo preconceito e racismo, a relação é inevitável quando fazemos análise de discurso. Por mais que a pessoa não seja racista, ao usar um termo ou expressão de cunho racista, ela está se alinhando a isso, mesmo que indiretamente: “cabelo ruim”, “cabelo pixaim”, “fazer negrice”, “serviço de preto”, a “situação está preta”, “ovelha negra”, “nuvens negras”, entre outros tantos exemplos mostram como a fala e o modo de vida da sociedade brasileira está marcado pelo racismo.
No processo de afirmação da identidade branca, os europeus inicialmente pensavam que a mistura entre negros e brancos , por se tratar de raças diferentes, geraria descendentes estéreis, tal qual ocorre com o cruzamento da égua com o burro, originando o “muar” ou como é mais conhecido, a mula e deste pensamento incorreto e racista nasceu o termo “mulato, mulata”.
Uma decorrência deste processo é o estereótipo que se afirmou atribuído aos negros uma virilidade quase animalesca para os homens e uma sensualidade inata às mulheres, que assim, “melhor serviriam sexualmente aos homens”, o que foi reiterado pela visão senhorial na interpretação de Gilberto Freyre, no clássico “Casa-grande e senzala” de 1933.
O que fica desse processo é a naturalização da condição de inferioridade dos negros, índios e mestiços, os quais durante a escravidão realizavam trabalhos pesados e aviltantes e após a Abolição em 1888, continuaram na mesma condição, absorvidos em subempregos ou funções vistas como indignas ( limpeza, carga e descarga, construção civil, portaria, jardinagem, motoristas, babás e empregadas domésticas).
No caso das domésticas ou das diaristas (versão mais autônoma da empregada fixa), as relações mudaram pouco ou nada, com exceção dos castigos corporais, mas o assédio moral ou sexual, persiste. A separação do que a doméstica/diarista pode comer ou onde (geralmente na cozinha e longe dos patrões) ainda é vista como normal, além do fato de ser muitas vezes apresentada como “da família” em alguns contextos.
Esta diferenciação fica ainda muito mais latente quando se observa nos imóveis de classe média, a presença da “dependência de empregada” : um cubículo de no máximo 12 metros quadrados, no qual mal cabem uma cama e um armário para acomodar a pessoa e se comparado com outras partes do imóvel, o closet da suíte principal ou a despensa, são maiores que este cômodo. A mensagem é clara para entender na divisão espacial, quem são os patrões e a empregada, a qual parece estar destinada a ser só, não constituir família e ali viver até a aposentadoria, no melhor dos casos. Logo, uma situação que não deixa de ser violenta.
O desmonte da valorização da branquitude, a repressão ao racismo e ao preconceito, no intuito de alçarmos uma sociedade mais justa, portanto, menos excludente e desigual ainda é um desafio para o curto, médio e longo prazo que não pode ficar cristalizado nas estatísticas cruéis que apontam o genocídio negro como algo natural ou fruto das “más escolhas e/ou vida errada”, culpabilizando sua vítimas e negligenciando a resolução desta questão que tem um histórico de séculos.