As Ricas Horas do Duque de Berry

As Ricas Horas do Duque de Berry
As Ricas Horas do Duque de Berry. Produção dos irmãos Limbourg - séc. XV. Mês de julho

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Hitler morreu no Brasil?

O título desta postagem pode parecer uma pergunta descabida, mas segundo uma recente dissertação de mestrado em Jornalismo pela UFMT, talvez possa vir a ser, uma vez que se confirmem as investigações, uma grande reviravolta na História.
Vejam a reportagem abaixo:

Fonte: Portal G1- René Dioz - 23/01/2014

Livro defende tese de que Hitler foi enterrado em cidade de Mato Grosso

Dissertação aponta que o nazista viveu seus últimos anos no estado.
Versão é contestada por professor de História Contemporânea da UFMT.


O ditador Adolf Hitler, marcado na história pela execução de milhões de judeus no século passado, pode ter escapado da invasão soviética a Berlim em 1945 e forjado o próprio suicídio a fim de fugir para a América do Sul, onde teria vivido e morrido com cerca de 95 anos na pequena cidade de Nossa Senhora do Livramento, a 42 km de Cuiabá. Pelo menos é o que defende o livro “Hitler no Brasil – Sua Vida e Sua Morte”, dissertação de mestrado em jornalismo de Simoni Renée Guerreiro Dias, que subverte a versão conhecida dos últimos dias do nazista. A pesquisadora deve realizar um exame de DNA em Israel com um suposto descendente do nazista.

Ainda em desenvolvimento, a dissertação segue a linha de outras pesquisas que apontam rastros de nazistas na Argentina após a Segunda Guerra, mas já recebeu críticas como a do professor de História Política e Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Cândido Moreira Rodrigues. Ele aponta falta de rigor científico no trabalho e afirma que não faltam referências na historiografia segundo as quais o ditador se suicidou ao ver-se encurralado pelos soviéticos em 1945.

A própria mestranda Simoni Dias, judia e residente em Cuiabá, conta que demorou dois anos para acreditar nos primeiros relatos que ouviu sobre a suposta passagem do Führer em território mato-grossense. “Eu zombava, dava risada, dizia que era blefe”, relata. Hoje, porém, ela se diz convicta e afirma que o austríaco não teria vindo parar em Mato Grosso por acaso.
O livro
Graduada em Educação Artística, Simoni começou a pesquisar os últimos anos de Hitler após ouvir boatos de que ele, assim como outros nazistas de primeiro escalão, teria perambulado pela América do Sul após a guerra que derrubou o Reich na Europa. Em "Hitler no Brasil", a autora registrou a parte inicial da pesquisa e ligou as versões de passagem pela América do Sul a outra história, a de que o Vaticano teria oferecido ao ditador derrotado o direito de posse e o mapa para localização de um tesouro jesuíta escondido desde o século XVIII em uma caverna em Nobres, cidade turística a 151 km de Cuiabá.
Hitler, portanto, teria escapado da invasão soviética e, com ajuda de Roma, viajou para a Argentina, para o Paraguai, para o Rio Grande do Sul e, finalmente, para Mato Grosso, instalando-se numa cidade que tem hoje com pouco mais de 11 mil habitantes.
Na região, teria buscado sem sucesso o tal tesouro prometido pela Igreja e morreu na década de 80, tendo sido enterrado com outro nome.
'Alemão velho'
No livro, Simoni diz que se intrigou pela existência de um idoso estrangeiro na cidade de Nossa Senhora do Livramento, na década de 80, que utilizava como sobrenome a cidade onde o compositor Bach, admirado pelo líder nazista, foi enterrado. Adolf Leipzig, conhecido pela vizinhança por “Alemão Velho”, seria o próprio Führer disfarçado e virou objeto de pesquisa de Simoni, que recolheu objetos, restos mortais e relatos sobre ele.
A pesquisadora obteve uma fotografia de 1982 de Adolf Leipzig com sua companheira "Cutinga" e quase se convenceu por supostas semelhanças fisionômicas com Hitler. Ela conta que manipulou a foto, adicionando um bigode no rosto do sujeito, e a imagem alterada lhe teria convencido por completo. Já a relação com uma mulher fora dos padrões da chamada "raça ariana" seria mais um elemento de disfarce, supõe.
Foto obtida pela pesquisadora mostra o senhor Adolf Leipzig com a companheira em Livramento no ano de 1982, quando Hitler teria 93 anos de idade. (Foto: Simoni Guerreiro Dias / Arquivo Pessoal)Foto obtida pela pesquisadora mostra o senhor Adolf Leipzig com a companheira em Livramento no ano de 1982, quando Hitler teria 93 anos de idade (Foto: Simoni Guerreiro Dias / Arquivo Pessoal)

Evidências
Outra suposta evidência considerada pela pesquisadora é o registro de uma internação para cirurgia na Santa Casa de Misericórdia de Cuiabá no dia 29 de novembro de 1979. O registro, porém, é para um paciente chamado Adolfo Sopping, então com 81 anos de idade e natural do estado do Rio Grande do Sul. Em fevereiro do ano seguinte a Santa Casa registrou a entrada de Adolfo Lepping, de 82 anos e de mesma naturalidade. Simoni defende que trata-se da mesma pessoa.
Para daí afirmar que se tratava de Hitler, a pesquisadora relata uma outra suposta evidência: segundo uma fonte não identificada no livro, uma freira polonesa do hospital teria reconhecido a figura de Hitler.
"Aqui esse homem não entra! Ele é sanguinário! Matou muita gente! Tire-o daqui, por favor!", teria exclamado a religiosa. Um padre a teria repreendido afirmando que aquele doente deveria ser atendido por ordens do próprio Vaticano.
A publicação de Simoni traz ainda evidências de outras supostas relações de Hitler com grupos de europeus que se fixaram em Mato Grosso, como suíços, e explora a peculiaridade da arma e de vestimentas que pertenceriam ao tal Adolf Leipzig, cujos restos mortais foram retirados do cemitério em Livramento para a pesquisa de Simoni.
Ela pretende submeter parte dos restos mortais, como cabelo e fragmentos de ossos, a exames genéticos com base em material colhido de um suposto descendente de Hitler localizado, segundo Simoni, em Israel. Ela deve viajar para o país ainda este ano para realizar o exame de DNA e depois seguir para a Alemanha a fim de concluir o projeto de mestrado.
Crítica
Apesar de se tratar de um trabalho acadêmico, o professor Moreira Rodrigues, da UFMT, afirma que não há qualquer evidência de que Hitler tenha sobrevivido à invasão soviética a Berlim e deixado o território alemão após a derrota dos nazistas. Ele também apontou falta de rigor científico e não enxergou os devidos critérios de apuração historiográfica na apuração de Simoni.
"Não é novidade o fato de que muitos que se dizem historiadores venham a levantar hipóteses as mais diversas sobre as possíveis estadias de Hitler na América do Sul e a sua consequente morte num dos países desta região do mundo", lembra o historiador, referindo-se a outras suposições já divulgadas sobre passagens de Hitler no Cone Sul.
Segundo ele, a historiografia é farta de evidências de que Hitler e sua companheira Eva Braun se suicidaram no bunker onde tentavam resistir aos ataques soviéticos. Subordinados, os próprios nazistas podem ter sido responsáveis pela incineração do corpo do líder antes que os soviéticos o capturassem. Segundo Rodrigues, esta é uma das únicas lacunas que ainda restam nesta história.

domingo, 19 de janeiro de 2014

O Iluminismo a partir de Cândido

Resenha: "Cândido ou o otimismo", de Voltaire.
Editora Nova Alexandria, 1995.
Tradução de Marcos Araújo Bagno
Apresentação de Fábio de Souza Andrade

Retrato de Voltaire pintado por Maurice Quentin La Tour, c. 1736. Fonte: Wikipedia.org.en



Este pequeno exercício tem como objetivo analisar a obra " Cândido" de Voltaire (1684-1778), buscando nesta, as influências de John Locke (1603-1689) a partir de suas idéias contidas no " Ensaio acerca do entendimento humano".

François Marie Arouet, conhecido pelo pseudônimo de Voltaire a partir de 1718, foi um filósofo extremamente crítico à Igreja e sua influência na sociedade francesa como na Europa, celebrizado por sua frase: "Écrasez l'infâme!", ou seja, esmagar a Infame , a Igreja. Quando escreveu "Cândido" em 1759, seu intento era atacar o fanatismo religioso ainda muito presente naquele tempo, tendo como pretexto ou mote as explicações obscurantistas dadas para o terremoto que arrasou Lisboa em 1755, pois o clero católico insistia na visão de "castigo divino".

A crítica, no entanto, não se encontrava apenas à Igreja, mas também aos pensamentos filosóficos de Leibniz (1646-1716) como também às idéias inatas de Descartes (1596-1650), as quais já tinham sido refutadas por John Locke.

Leibniz é criticado a partir da sátira , pois as continuas desgraças de Cândido e de seu mestre Pangloss (o maior filósofo e metafísico da Alemanha, alusão direta de Voltaire a Leibniz) são uma manifestação caricatural do otimismo desmedido do filósofo alemão. Quanto a Locke, Voltaire sofreu uma forte influência do pensamento inglês (referia-se a Inglaterra como a "ilha da Razão" e ali vivera exilado entre 1726 e 1728), pois as aventuras de Cândido pelo mundo e sua incessante visão de que o castelo onde nasceu na Vestfália era "o melhor dos mundos possíveis" representam a contraposição entre o conhecimento dogmatizado (Cândido assim acreditava apenas por ouvir seu mestre Pangloss e crer na sua plena certeza, sem contestá-lo) e a prática sensorial (segundo o pensamento de Locke, o conhecimento se dá a partir da experiência e da reflexão). 

"Cândido" , assim como outras obras literárias de Voltaire, apresenta uma estrutura de obra de tese (proposição, desenvolvimento e conclusão) dotadas de um estilo leve e despojado, com um enredo fantástico repleto de aventuras e peripécias de seus personagens, as quais são inverossímeis , passando ao leitor uma impressão de estar assistindo uma peça de teatro de marionetes, pois o narrador conduz os personagens conforme bem entende.

Cândido era um rapaz muito tranquilo (filho bastardo de uma irmã do barão Thunder- ten-tronckh, um poderoso nobre da Vestfália, região ocidental da Alemanha, junto à fronteira da França) que foi educado nos melhores costumes, sendo dotado de uma boa índole e muita vivacidade. Teve como seu preceptor, Pangloss, um metafísico e filósofo que:" provava admiravelmente  que não há efeito sem causa e que , neste mundo, o melhor dos mundos possíveis, o castelo do barão era o melhor de todos os castelos e a senhora  do senhor barão a melhor de todas as baronesas."[1]     

 No entanto, o jovem Cândido se apaixonou pela filha do barão, Cunegundes, sendo   flagrado pelo barão quando a beijava. Devido a falta cometida, Cândido foi expulso a pontapés do castelo do barão e encontrou-se só no mundo. Voltaire, usou a imagem bíblica do "Pecado Original" comparando Cândido com Adão, ambos foram expulsos do "Paraíso" devido a queda nas tentações femininas.

Solto no mundo, Cândido começa uma longa viagem repleta de acontecimentos desfavoráveis, tentando a todo custo provar que o sábio Pangloss estava certo, porque:" tudo vai pelo melhor possível"[2] . Tais infortúnios de Cândido ao longo da narrativa  constituem-se na experimentação que ele deveria passar afim de comprovar sua visão de mundo, a qual derivava do pensamento de seu preceptor.

Voltaire mostrou que Cândido em sua ingenuidade foi guiado pelo seu desejo de reencontrar Cunegundes e nesse ínterim entender melhor o mundo, sempre altivo, sempre seguro que tudo tinha uma causa e esta relação (causa e efeito) regia as coisas. Cruzando a trajetória de Cândido com o pensamento de Locke a respeito das hipóteses: " Não devemos assumir nenhuma[ hipótese] muito precipitadamente ( que a mente,  que sempre penetraria nas causas das coisas, e teria  princípios para apoiar, é bastante para fazê-lo) até que tenhamos examinado bem os pormenores e feito vários experimentos, nesta coisa que explicaríamos por nossa hipótese, e até verificarmos se isto de algum modo concorda com elas; se nossos princípios nos levarem bem ao fim e não forem tão inconsistentes com um fenômeno da natureza, como parecem tão acomodados a explicar outro , ao menos, tomemos  o cuidado para que o nome princípios não nos iluda, nem se imponha a nós por fazer-nos receber isto como uma verdade inquestionável, que é, no melhor dos casos, muito duvidosa conjectura; tais são a maioria( quase disse todas) das hipóteses na filosofia natural."[3] 

A discussão de Locke gira em torno da questão da elaboração de hipóteses coerentes e de sua conseqüente experimentação para a construção do conhecimento, não acatando qualquer " princípio" em definitivo e mesmo que tenho sido provado, que este não se torne um dogma . Tal fato,  vai ao encontro da perspectiva de Voltaire, o qual questiona o fanatismo e a exacerbada manutenção dos dogmas da Igreja, pois as ações de Cândido ocorrem sem reflexão, pois o mundo era conforme Pangloss dizia.

A aceitação pura e simples de Cândido, aos poucos se transforma no despojamento dos preconceitos, dando espaço ao aprendizado a partir de sua relação com o mundo. Uma relação própria com o mundo e bem diferente da "redoma" do castelo em que vivia na Vestfália , constituindo uma visão positiva da Natureza, não concebendo-a como uma desordem constante repleta de infelicidades, mas de um processo rico de aprendizado.

Um dos principais motivos dos infortúnios de Cândido foi as gigantescas riquezas que trouxera do El Dorado, o lendário país das riquezas infinitas, pois somente um indivíduo puro como Cândido poderia encontrá-lo. Tais riquezas que trouxera foram responsáveis pelo despertar da cobiça dos homens , os quais se propunham a ajuda-lo, mas sempre querendo lucrar muito ou mesmo enganá-lo, aproveitando-se de sua ingenuidade.

Cândido caiu em desgraça com o barão devido ao seu amor por Cunegundes e este foi o motivo que guiou toda sua trajetória, a idéia de reencontrar sua amada e ser feliz. Todavia, ao longo da busca descobre que sua amada fora vítima das mais bárbaras violências, havia se tornado escrava sexual (Voltaire aproveita esta circunstância para criticar a devassidão de alguns membros da Igreja, entre eles o próprio papa) e já não era tão bela quanto fora em sua juventude. 

Na definição do próprio Cândido, o otimismo é dizer que "tudo está bem, quando tudo vai mal" , mas esta chama o guiou até seu intento, quando reencontra Cunegundes já não era tão bela e formosa, encontrava-se pobre, numa vida extremamente infeliz e mesmo nestas condições quis ficar com ela. Naquela altura, Cândido já havia perdido a maior parte de sua fortuna e só lhe restara o casebre que morava com Cunegundes, a  velha criada, Pangloss, Martinho e Cacambo. 

Final feliz? Não , estas circunstâncias não trouxeram toda paz e harmonia:" A mulher dele , tornando-se todos os dias mais feia, fez-se rabugenta e insuportável; a velha adoeceu e tornou-se  ainda pior de gênio que Cunegundes; Cacambo  que trabalhava no jardim, e ia vender legumes a Constantinopla, via-se carregado de trabalho e amaldiçoava seu destino; Pangloss sentia-se desesperado por não brilhar em alguma Universidade da Alemanha; quanto a Martinho, estava firmemente persuadido de que se está mal em toda parte; recebia as coisas com paciência." [4]

            A visão de Cândido ao fim da história se altera, pois suas “aventuras” lhe trouxeram uma perspectiva diferente, já que travara contato com o mundo real e assim pode constatar que o mundo não era tão perfeito e pode ver que sue mestre, Pangloss, também já não acreditava nesta fórmula de viver (Tudo está sempre bem, mesmo estando mal). O desfecho da história, não é uma visão de pessimismo violento, porém mostra a necessidade de uma maior reflexão sobre as experiências, deixando de depositar todos os desígnios na Providência Divina.

Voltaire, crê numa Entidade Superior aos homens, mas que não se contradiz com o pensamento racional, valorizando portanto, a inquietação e a reflexão humana. Cândido, termina com uma pequena casa, uma mulher e alguns amigos e conversando com um sábio árabe, este lhe revela o que seria vital: o trabalho, o qual valeria muito mais que do os bens materiais, pois o homem não teria nascido para o repouso.

As vivências de Cândido e a negação da tese de Pangloss no fim do enredo podem ser colocados uma forte presença do empirismo de John Locke na construção do conhecimento humano nesta obra de Voltaire, um autor que dentro da perspectiva iluminista, criticava a plena aceitação dos dogmas religiosos e a ausência de uma busca mais racional nas pessoas de sua época, principalmente o povo, que estava imerso no fanatismo e não procurava sair de seus "respectivos melhores mundos" para experimentar e perceber os benefícios da Razão, já que viviam imersos na superstição. 



[1] VOLTAIRE - " Cândido ou o otimista" pág. 10
[2] Idem op. cit.  pág. 14
[3] LOCKE, John - " Ensaio acerca do Entendimento humano" capítulo XII , pág. 279
[4] VOLTAIRE - " Cândido" pág. 158

domingo, 12 de janeiro de 2014

Uma visão sobre a Africa durante a expansão imperialista: "O Coração das Trevas", de Joseph Conrad

RESENHA: " O Coração das Trevas" - 1902
Joseph Conrad (1857-1924)
Edição consultada: Editora Iluminuras, 2002. 
Tradução e apresentação de Celso M. Paciornik

                                            Joseph Conrad - créditos: www.wikipedia.org

O romance "O Coração das Trevas"  de Joseph Conrad, escrito em 1902 tem como enredo a viagem de um marinheiro inglês, Charles Marlow, o qual obtém um emprego numa companhia de exploração das colônias africanas, precisamente, na bacia do rio Congo. A narrativa, no entanto, não se atem simplesmente a viagem, mas a todo um processo de auto-análise do protagonista, bem como do seu papel dentro da empreitada que se envolve.

Tâmisa – essa é a palavra-chave que utilizada pelo autor no início de seu discurso, fornece já um dos pontos sobre os quais se sustentará o próprio desenvolvimento do livro. É interessante observar que Conrad se porta aqui, como mais um dos passageiros da escuna Nellie, que ancorada em meio ao referido rio, esperava “a virada das águas”.

O fato da narrativa se desenvolver ao longo de uma viagem que tem início em Londres (centro e berço da civilização) e seu destino é a  inóspita selva africana (periferia  e representação da barbárie) dá a noção de que Conrad cria um alterego (Marlow) e a partir dele começa a fazer uma viagem interna , buscando respostas para suas angústias, ou seja, da mesma forma , deixa-se o conhecido e busca-se o desconhecido, o eu.

Charles Marlow inicia a narrativa quando se encontra em Londres, numa viagem de passeio pelo Tâmisa , depois de ter retornado da África, relatando aos seus amigos os eventos  lá ocorridos. Neste momento, Marlow se descreve como um homem ansioso por uma ocupação, um trabalho e de certa forma uma missão. Quando conversa com uma velha tia , esta bem relacionada, compromete-se a ajudar o sobrinho na obtenção de um bom emprego, pois conhecia pessoas influentes que poderiam ajudá-lo.

Não tarda muito e logo Marlow está empregado e começa a tomar contato com o universo da exploração colonial: a entrevista com o responsável da companhia, o exame médico . Práticas que dentro de seu percurso indicam a Marlow a sua posição, ou seja, elemento participante de um  sistema hierarquizado, no qual é subalterno e ao mesmo tempo peça chave, porque realiza atividades nas " fronteiras da civilização" - o coração das trevas: a África. Um dado marcante deste processo é como o médico o examina (medindo-lhe o crânio) e depois revela seu interesse em saber as mudanças sofridas por aqueles que rumam para as terras desconhecidas.

Neste complexo caminho, Marlow vai presenciando as transformações do ambiente e das pessoas que nele convivem, quanto mais se interioriza, mais vai percebendo o distanciamento existente entre o que se tem por civilização e o que é perpetrado em nome dela.

Aparentemente o ambiente é de tranquilidade, esbarrando por isso, numa certa monotonia. A presença do rio, no entanto, desperta no narrador-personagem uma profunda reflexão, a se confundir com a do único passageiro referido nominalmente – Marlow, uma espécie de homem do mar. Referindo-se aos homens que dali teriam partido “à caça do ouro ou em busca da fama, levando espada e muitas vezes a tocha, mensageiros do poder da terra, portadores de um centelha do fogo sagrado” (p.13), Conrad parece fazer despertar em Marlow, reminiscências de um passado prestes a explodir.

Conrad põe como objetivo a crescente curiosidade de  Marlow encontrar o sr. Kurtz, homem estranho , complexo e de grande notoriedade na companhia, pois era responsável por um importante posto de extração de marfim, localizado na parte mais remota do interior do  continente. No entanto, gradativamente vai percebendo no  "novo mundo" que o cerca , as noções de civilidade e barbárie são controversas e relativas: Marlow vê com quanta crueldade e desdém os negros são tratados, submetidos a todas as formas de violência pelos brancos  e estes se dizem portadores da nobre missão civilizatória. Um ponto relevante deste paradoxo é o contato com o contador de um entreposto da Companhia, o qual representava o poder branco: impecavelmente vestido, com ar tranquilo e soberbo ; no mesmo lugar via-se os negros duramente explorados e tratados como bestas de carga, desprovidas de qualquer  sentimento humano.

As imagens gritantes e o choque causado pela noção de realidade que imposta aos homens que chegam a selva vão instigando Marlow a cada vez mais a tomar contato com o Sr. Kurtz, um homem que estava embrenhado neste mundo insano. A natureza parece ali transformar os homens e ao invés de domarem o desconhecido, são alijados das suas premissas de ordem, cultura e sensatez. A selva tem sua lei. 

Outro dado pertinente além da crueldade, é a apropriação das terras, das pessoas e das riquezas daquela região, pois foi um processo organizado racionalmente dentro de gabinetes e ministérios, visando a extração máxima de riquezas e para tanto utilizou-se todas as formas possíveis de violência , as quais eram legitimadas e revestidas pelo " verniz" civilizatório: a visão pejorativa do outro ( o negro) e a consequente escravização, o aculturamento e a implantação de um modelo estrangeiro de organização que deixou marcar profundas no continente.

O contato com o sr. Kurtz causa um choque em Marlow, pois aquela figura enigmática torna-se um ser descontrolado, um homem que se distanciou dos padrões estabelecidos como normais, tornando-se perigoso. Toda esta insânia choca Marlow, pois a crueldade dos modos com que Kurtz trata os negros é tão aviltante ou até pior do que os próprios colonizadores e no entanto, os negros se referem a Kurtz como um "deus", uma entidade superior.

Além dos nativos, há um marinheiro russo que segue Kurtz e portanto está sob sua influência, tendo-o como uma espécie de mestre. O fato mais curioso é o desfecho do romance, no qual Kurtz é retirado da selva por Marlow e conforme vai se distanciando da selva , sua vida vai se esvaindo até morrer no barco dizendo: " O horror! O horror". Conrad dá a entender que Kurtz estava intimamente ligado com a selva e sua saída do coração das trevas era como se estivessem arrancando seu coração. O homem que chegara para dominar a natureza foi dominado por ela de tal maneira, que ao serem separados, perde sua fonte de vida.

A vida de Kurtz, no entanto, ainda tinha ligações com a "civilização", pois deixara um antigo amor, sua ex-noiva e pediu a Marlow que entregasse a ela um pacote, o qual não deveria cair nas mãos de ninguém da companhia Ao encontrá-la esta questiona quais teriam sido suas últimas palavras e Marlow percebendo o abalo emocional da moça, diz que tinha sido o nome dela, reduzindo sua dor.

Joseph Conrad propõe uma visão crítica e aguçada do processo de colonização da África, procurando ressaltar a destruição causada pelo homem contra a natureza e contra si mesmo, pois o número de vidas consumidas neste processo, seja de colonizadores ou de colonizados foi elevado. A vaidade e ganância foram os fatores propulsores de uma corrida desenfreada para a dominação daquele mundo que até então era selvagem, mas Conrad procura mostrar que a selvageria esta presente no interior humano e pode facilmente transformar a vivacidade e alegria num coração das trevas.          

Conrad por Coppola

A obra de Joseph Conrad pode ser destacada por sua relevância quanto à qualidade e também à atualidade, pois seu livro Coração das Trevas escrito em 1902 retrata a ganância e o egoísmo presente dentro do processo de exploração das colônias africanas, tendo porém uma amplitude maior, ou seja, sua visão não se restringe apenas a este período, mas serve para entendermos todo o processo de roedura do continente e também para vislumbrarmos  o funcionamento do capitalismo e da crueldade de seu sistema.

A obra de Conrad inspirou em 1979, Francis Ford Coppola a produzir um filme usando como roteiro o livro Coração das Trevas, trata-se de Apocalipse Now, agraciado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1979.

Coppola procura utilizar a visão aguçada de Conrad e através de sua atualidade desloca o eixo para a Guerra do Vietnã, fato este que abalou a sociedade estadunidense, visto seu fracasso e dispêndio de forças humanas numa guerra inglória e tão gananciosa quanto o ímpeto colonialista do século XIX. Em 1968, no auge da guerra, os EUA já tinham enviado cerca de 530.000 soldados e tiveram, ao longo do conflito, até sua retirada formal da guerra, entre 1973 e 1975, cerca de 60.000 mortos e 303.000 feridos.

A noções de realidade e loucura,  justiça e arbitrariedade são trabalhadas nas figuras do personagem principal de Conrad,  Marlow e de seu correspondente no filme, Tenente Willard, interpretado por Martin Sheen. Toda a insânia de ambos os processos se encaixam perfeitamente: o branco civilizador levando o progresso para as regiões bárbaras e no entanto, quanto mais  se embrenham na selva, mais iam se desumanizando, perdendo seus referenciais. A natureza e seus habitantes tinham um papel dúbio, pois era ao mesmo tempo inimigos e fonte de renda para os "libertadores"/exploradores.

Em Apocalipse Now a figura do Coronel Kurtz tem a mesma apresentação que na obra de Konrad, no entanto a dramatização e a atuação de Marlon Brando(1924-2004), transformam-lhe num monstro insano ou então como uma antítese ao sistema que até então encontrava-se envolvido. Quando sai do sistema ou seja, quebra a hierarquia, Kurtz torna-se uma ameaça e deve ser eliminado.

A crítica de Coppola ao usar a obra de Conrad era, ainda que passados poucos anos do desonroso fim do conflito para os EUA , alertar a sociedade que o conjunto de valores como "progresso, civilização e cultura" foram deturpados e alterados de acordo com interesses financeiros pelas “potências da vez”: os europeus no século XIX e depois os estadunidenses ao longo do século XX, tendo como “mundo selvagem” as florestas do sudeste asiático e toda a luta ideológica da Guerra Fria. 

Vale lembrar que, todos os expedientes estavam válidos, como prisões arbitrárias, tortura, morte de inocentes, estupros, além do uso de armas químicas, desrespeitando a Convenção de Genebra: como o desfolhante "Agente laranja" que é cancerígeno, tendo o objetivo de abrir espaços nas densas florestas para atacar as forças norte-vietnamitas e assim, contaminaram solo e água e ainda hoje, causam problemas as populações atingidas. Outra arma foi a substância incendiária "Napalm", que podia provocar combustão, atingindo uma temperatura em torno de 1000 graus Celsius.

O Coronel Kurz, vivido por Marlon Brando, sintetiza os patamares mais vis que o abuso do poder e da autoridade, regados e fortalecidos pela ganância desmedida, ainda são capazes de causar. 

Sugestão: Filme - Apocalipse Now, Francis Ford Coppola, 1979, 153min.




















Créditos: http://ia.media-imdb.com/

sábado, 11 de janeiro de 2014

FELIZ 2014!

Caros leitores,

Em primeiro lugar, desejo de antemão, um excelente 2014 para todos com muita Saúde, Paz e Felicidades!!!!!

Depois de uns dias de descanso, aos poucos, estou voltando à rotina de estudos, leituras e postagens aqui no Gabinete, afinal, completaremos em maio, nosso "ano III", com certeza, repleto de muitos textos e referências em leituras para os interessados em História como um todo, além dos meus alunos.

Um grande abraço e até breve!