Nos tempos anuais, a prática da cidadania está associada a uma relação de direitos e deveres que os cidadãos têm dentro de uma comunidade, desde que nela esteja em vigência o Estado de Direito, situação em que o cidadão tem suas liberdades e direitos assegurados pela Constituição, um modelo que tem sua origem nos ideais liberais do século XVIII, dentro do pensamento iluminista que criou as bases para o nosso atual modelo de sociedade.
A inspiração do modelo iluminista foi retirada do mundo antigo, mas com algumas alterações significativas, pois o princípio do igualitarismo era muito restrito na pólis grega ou em Roma e justamente os parâmetros da igualdade foram os responsáveis para a formulação da sociedade liberal que teve a burguesia como sua articuladora e que também ansiava em tomar o poder político.
Dentre os pensadores gregos, Aristóteles (384-322 a.C.) apontou significativas diferenças entre o cidadão e o homem livre que precisava trabalhar:
A perfeição do cidadão não qualifica o homem livre, mas só aquele que é isento das tarefas necessárias das quais se incumbem servos, artesãos e trabalhadores não especializados; estes últimos não serão cidadãos, se a constituição conceder os cargos públicos à virtude e ao mérito, pois não se pode praticar a virtude levando-se uma vida de um trabalhador braçal.
Para Aristóteles, a prática da cidadania estava diretamente relacionada com o ócio, ou seja, a disponibilidade de tempo para se entregar completamente aos negócios públicos, que o filósofo denominou como “virtude”. Dessa forma, o trabalho era visto como indigno, como algo que desmerecia o homem, enquanto o tempo livre daqueles que não precisavam trabalhar era um motivo distinção, de supremacia.
Ao analisarmos as palavras de Aristóteles, percebemos que mesmo entre homens livres, o fato de trabalhar ou não era um dado marcante para a vida social do mundo grego e que no caso dos homens livres mais pobres, a participação política foi mais sustentável durante o contexto do século V a.C., quando Péricles estendeu a participação aos trabalhadores através do pagamento de salário, podendo assim deixar seus afazeres para participarem da Assembleia.
Na época de Aristóteles, a Hélade já era um domínio macedônico, não havia mais a democracia, sendo que as cidades-Estado estavam submetidas ao controle de Alexandre Magno, dessa forma, o poder do cidadão estava limitado, com poucas instâncias de ação, dentre elas, a possibilidade da assembléia reunida exercer o papel de juiz como no documento abaixo, citado por Paul Veyne*, estudioso especializado nos estudos gregos:
Num processo em que era acusado e a multidão ateniense atuava como juiz, Demóstenes [orador político, 384-322 a.C.] jogou na cara do adversário [também um orador político] as seguintes críticas: “Sou melhor que Esquines e mais bem nascido; não gostaria de dar a impressão de insultar a pobreza, mas devo dizer que meu quinhão foi, quando criança, frequentar boas escolas e ter bastante fortuna para que a necessidade não me obrigasse a trabalhos vergonhosos. Tu, Esquines, foi teu destino, quando criança, varreres como um escravo a sala de aula onde teu pai lecionava.” Demóstenes ganhou triunfalmente o processo.
Esquines era um homem livre, de condição humilde, filho de um professor e que segundo aponta o fragmento, ajudou o pai com pequenos serviços, enquanto ele ensinava aos filhos de abastados senhores, fazendo com que o conhecimento se tornasse ainda mais raro e seleto para aqueles que o detinham e muito mais distante para aqueles que não possuíam tempo, ou melhor dizendo, não tinham recursos para se afastar do trabalho e saborear os benefícios de gozar o ócio e de se afirmar enquanto agente influente no sua cidade.
O ócio era a chave para ser considerado um homem na plenitude de suas ações, enquanto o trabalho afastava o homem livre dessa condição, aproximando-o da situação mais vil: a escravidão. A honra e a distinção estavam intimamente ligadas ao poder que o tempo livre concedia àqueles que queriam receber conhecimentos e deles se valer para exercer o poder, algo que foi conservado durante muitos séculos e somente no último século vem sendo modificado, de modo mais ou menos rápido, dependendo da civilização que analisemos.
Um dado de grande importância ao analisarmos o valor do ócio é pensarmos a relação existente entre a produção artística e o tempo que o artista tinha para tanto e nesse caso, no mundo antigo, este artista poderia ser u homem livre que trabalhava com um grupo de homens lhe ajudando, os quais poderiam ser também livres ou escravos e dessa forma, mesmo produzindo aquilo que chamamos hoje de “obras de arte”, sua condição não era vista como positiva.
A arte sempre necessitou do ócio para existir e durante o início do Império Romano, temos a figura de Gaius Maecenas ou Caio Mecenas (74?-8 a.C.), um rico romano amigo e conselheiro do imperador romano Otávio Augusto, que foi responsável pelo patrocínio a vários artistas de sua época, tais como Virgílio e Horácio, que lhe dedicaram vários versos em seus poemas e assim, posteriormente, passou-se a associar a um patrocinador das artes a denominação de “mecenas” e daí derivou a ideia do mecenato, ou seja, a encomenda de obras os artistas, os quais recebiam quantias em dinheiro ao longo da produção do “trabalho encomendado”, podendo portanto, se dedicar exclusivamente às artes, as quais se transformaram num modo de vida, um ofício.
Nos tempos modernos, o artista que não dispunha de um mecenas (fosse um nobre, a Igreja, a Coroa ou alguém abastado) tinha que ter um emprego “mais convencional” que lhe garantisse o sustento e nas horas vagas, buscava dedicar-se às artes. Para aqueles que conseguiam um emprego como artista da Corte a situação era um pouco mais equilibrada, assim, o Estado através dos recursos públicos buscava contratar artistas para exercerem exclusivamente suas atividades na elaboração de monumentos, pinturas, esculturas, músicas e apresentações de concertos, produzindo textos ou até mesmo, atuando nos cerimoniais para a elaboração de festas e eventos governamentais.
Atualmente a produção da arte e a sobrevivência material do artista continuam a ser dilemas para a reflexão da sociedade atual, que ampliou de modo significativo as formas de patrocínio que permitam a dedicação exclusiva para a arte, mas ainda não se garante esta condição a todos, seja em termos de patrocínio governamental (bolsas de estudos, prêmios, isenções fiscais), seja no complexo mercado das artes, onde os critérios de valor aplicados sobre o trabalho de um artista são muitas vezes questionáveis, especialmente por questões subjetivas de galeristas e marchands (negociador de obras de arte), que nem sempre são acompanhadas por valores éticos.
Se o ócio permitiu a elaboração de conhecimento em diferentes áreas, além da própria produção das artes, porque temos que lidar ainda hoje com precárias verbas para os segmentos culturais? Uma questão de difícil resposta que poderia ter como esboço inicial a citação de Sigmund Freud (1856-1939), pois entre seus estudos condicionou de uma maneira muita clara que “o conhecimento traz o poder” e esta frase pode ser levada para as mais diferentes esferas, do homem em relação a si próprio, aos seus semelhantes ou ao mundo de um modo geral.
Hoje, o acesso ao conhecimento está muito mais dinâmico e facilitado, mas a relação com o conhecimento ainda tem características dos tempos remotos: o tempo para estudar continua sendo precioso, mesmo que existam cursos noturnos em escolas e universidades para atender quem trabalha ou ainda, bolsas que permitam o financiamento dos estudos, não há como deixar de dedicar uma parcela de tempo para o desenvolvimento da formação do cidadão, que vem buscando cada vez mais condições para ter uma melhorá-la e assim gozar de uma vida mais estável e mais justa.
(*) Os dois documentos se encontram em VEYNE, Paul (org.). História da vida privada: do Império Romano ao ano mil, v. I. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, 19ªedição.
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