Quando ouvimos a expressão “gótico”, geralmente nos lembramos de alguns jovens que são aficionados por roupas pretas, caveiras e cemitérios. Algo que remete aos filmes de terror com seus monstros e mortos-vivos. De certa forma, não é de todo errado pensar assim, mas ao pensarmos a expressão “arte gótica”, nós temos que voltar no tempo e localizar o fenômeno do qual estamos falando. Há uma relação entre o “gótico pós-moderno” de hoje e a “ arte gótica medieval”??
A resposta é sim e não. Esta relação gótico/horror é um desdobramento de algumas expressões artísticas do século XIX, relacionadas ainda com o Romantismo, cujos escritores tentaram resgatar a Idade Média “idealizada” e que entre suas várias tendências, houve a manifestação da busca do locus horrendus, um interesse pela morte e seus domínios. Esta tendência influenciou alguns escritores como Mary Shelley (1797-1851), autora de Frankenstein ou Bram Stoker (1847-1912) com Drácula e com o advento do cinema, o filme Nosferatu de Friedrich Wilhelm Murnau (1888-1931), abrindo caminho para o chamado gênero de horror, tão bem representado no cinema por Béla Lugosi no papel de Drácula e Bóris Karloff como Frankenstein ainda nos anos de 1930 e 1940.
Nosferatu: a adaptação de Murnau (1922) da obra de Bram Stocker
Béla Lugosi (1882-1956): ator romeno que "imortalizou" o personagem de Bram Stocker.
Bóris Karloff (1867-1969) aqui personificado na criação de Mary Shelley, de 1831.
Agora, ao pensarmos na expressão “arte gótica”, estamos falando de uma manifestação artística produzida entre o fim do século XII e o século XV, mais tardiamente. No entanto, o termo gótico é pejorativo, pois foi uma denominação à posteriori e pejorativa dada pelos renascentistas, como Giorgio Vasari (1511-1574), Leone Battista Alberti (1404-1472) ou Rafael Sanzio (1483-1520) ao se referir à arte medieval como uma “arte bárbara”, ou seja, dos godos (visigodos, ostrogodos). Esta visão, portanto, entendia a Idade Média como uma “ Idade de Trevas”, a qual deveria ser esquecida e a cultura que desapareceu(greco-romana) deveria ser restaurada.
A Igreja Cristã por volta do século XI havia se tornado uma instituição poderosa e universal, ou seja, católica (do grego katholikos) e neste momento floresceu um padrão estético chamado a posteriori de românico, segundo Ernst Gombrich (1909-2001): "Nas igrejas românicas encontramos geralmente arcos redondos assentes em maciços pés-direitos. A sensação causada por estas igrejas, interna e externamente, é de uma robustez compacta. Há poucas decorações, as janelas são poucas, mas as paredes e torres inteiriças lembram-nos as fortalezas medievais".
Catedral da Sé de Lisboa(1147): com ares de castelo, uma fortaleza de Deus.
Contudo, não podemos dizer que a "pouca decoração" que se referiu o prof. Gombrich, não significa uma ausência de criatividade ou parâmetro comum de elementos estilísticos em toda Europa ocidental, pois existem notáveis diferenças entre as construções românicas, seja entre as abadias e mosteiros que fazem parte do Caminho de Santiago de Compostela ou das igrejas da Península Itálica do mesmo período.
Rotas de Caminho de Santiago de Compostela (séc.XI-XIII)
Elemento que pode ser destacado é uma hierarquização das partes : a arquitetura do prédio, a qual sustenta e se complementa com as esculturas e por fim a pintura dos afrescos. A Igreja é a "fortaleza de Deus", uma massa compacta de pedras que protege o corpo e alma dos fiéis, dando a idéia de que cada cristão é uma pedra da própria igreja e esta é formada por capelas irradiantes juntas da nave principal, cujos volumes se aglutinam numa expressão plástica da idéia de coletividade presente no medievo. Escura como a própria terra, fonte da vida que abrigou seus filhos em seu ventre durante a gestação dos tempos e que depois do nascimento, mantém seus filhos junto de seu seio , provendo-os com o pão celestial: a palavra de Deus.
Sob as ruínas de um templo pagão remanescente do período galo-romano(período da conquista dos gauleses pelos romanos) na cidade de Autricum, atual Chartres, foi erguida uma igreja dedicada a Virgem Maria (Notre-Dame em francês significa Nossa Senhora), prédio que passou por várias intervenções, pois sofrera um desmoronamento em 743 e foi reconstruído tornando-se a sede do bispado (catedral). A fachada românica da catedral foi construída por volta de 1024, mas sofreu um incêndio em 1134 , sendo reconstruída e destruída novamente em 1194 por outro incêndio e mais uma vez reconstruída, percebendo-se por exemplo a manutenção do pórtico original de 1134, mas com um plano uniforme das torres, pois a torre esquerda corresponde ao estilo românico, enquanto a direita é mais alta e tem como padrão estético o gótico flamboyant (flamejante).
Fachada ocidental da Catedral de Chartres (séc. XII-XV)
Como muitas catedrais românicas, Chartres apresenta uma planta na forma de cruz e seu interior já se nota as modificações do estilo gótico: paredes mais finas, abóbodas ogivais mais altas e muitas janelas e vitrais que inundam a nave principal com uma luz multicolorida, que nas palavras de Georges Duby: "Deus é Luz" e a catedral um relicário delicado que buscava aproximar os fiéis do Inefável, ou seja, do intocável.
A planta da própria igreja faz uma alusão ao corpo do Cristo crucificado: a entrada representa os pés; o caminhar , pela nave principal, em direção do altar as pernas e o tronco, cujos braços se constituem pelo transepto e a cabeceira iluminada pelos vitrais, cuja direção é alinhada para o leste(direção de Jerusalém e do nascer do Sol) constitui a cabeça do Salvador. (Veja a planta abaixo)
Planta cronológica da construção da Catedral de Chartres
A catedral, portanto, constitui-se num ponto de encontro com o divino, sendo assim, os fiéis durante várias gerações se esforçaram para a construção do templo, uma ação conjunta das diferentes corporações de ofícios da cidade num esforço coletivo de elevar as alturas a grandeza de Deus e de sua rainha , a Virgem Maria. Cada homem era uma pedra e todos eram a catedral, ou mesmo, a própria Igreja.
Chartres, como outras catedrais góticas, foi construída num período de crescimento populacional e dessa forma, suas dimensões (137m de comprimento e 64,30m de extensão no transepto) eram bem maiores que as catedrais românicas, pois era preciso comportar um número maior de fiéis. Para tanto, além de uma grande nave principal, as naves laterais também maiores e um grande deambulatório que servia de corredor para a contemplação das relíquias expostas nas capelas radiais junto a cabeceira da Igreja. Neste percurso pelo interior do templo, ou também, pelo caminhar simbólico sobre o corpo do próprio Cristo, os homens encontravam uma extensa narrativa em delicado vidro colorido, ou seja, os vitrais.
No intuito de ensinar a palavra de Deus e mostrar sua grandeza, os vitrais forneciam um elemento mágico e transcendente, banhando de luz o interior do templo e nas diferentes nuances de luminosidade , mostravam da Criação ao Juízo Final, da história de Israel a da França e também passagens da vida de santos, profetas e da Virgem.
Porém, cabe ressaltar que a utilização dos vitrais nas igrejas a partir dos fins do século XII é um resultado de um conjunto de fatores: a intensificação das práticas comerciais e o renascimento das cidades, havendo portanto, excedentes que pudessem ser aplicados nas doações para a igreja; uma transformação nas técnicas de construção graças a utilização de cálculos mais precisos e o domínio mais aprofundado da geometria, podendo calcular com razoável variabilidade os arcos ogivais que constituem um dos elementos do gótico e também o manuseio do vidro (material caro e escasso).
Arcos ogivais da catedral de Chartres
Para incluir os vitrais, as paredes foram se tornando mais finas e vazadas, necessitando portanto, de um reforço externo para mantê-las em pé e ao mesmo tempo, não comprometer a visão dos vitrais. Estes reforços são denominados arcobotantes e se constituem de verdadeiros andaimes de pedra que sustentam a caixa de vidro formada pela catedral.
A estrutura do vitral é feita em metal, chumbo principalmente, o qual forma uma malha rígida e nesta se encaixam os pedaços de vidro colorido , os quais reproduzem as imagens. Algumas tonalidades como o vermelho e o azul eram resultantes da fabricação do vidro, enquanto outras eram acrescentadas sobre o vidro branco numa técnica denominada grisalha.
Notre-Dame de la Belle Verrière (1145-1150)
Ao observarmos esta baia, no sentido ascendente, encontramos três momentos: o primeiro na base, onde a Fé do próprio Cristo é posta em teste pelo demônio durante as Três Tentações no deserto; o segundo momento durante o primeiro milagre e, portanto, início da vida pública de Jesus nas Bodas de Caná e o terceiro que domina o restante da baia, onde vemos Maria e Jesus sentados num trono rodeados de anjos, sob a Luz do Espírito Santo.
Jesus, num primeiro momento, encontra-se observando o banquete na companhia de dois de seus discípulos, tendo as mãos sobrepostas e apoiadas sobre o corpo. Maria conversa com Jesus e apresenta um semblante tenso, diferente de seu filho, o qual tem um livro numa mão e a outra se encontra aberta, voltada para sua mãe, acatando o pedido desta.
Maria aparece numa outra cena em ação, conversando com um dos criados que serviam a mesa do banquete: Maria tem a postura semelhante à de Jesus, apresentando um livro na mão esquerda e a mão direita aberta, gesto correspondido pelo criado tem um jarro numa mão e a outra livre e aberta, voltada na direção da Virgem.
O desdobramento da ação se dá na cena seguinte, quando os criados enchem os jarros apontados por Jesus com água e os transforma em jarros de vinho, o qual foi levado à mesa do banquete pelo mesmo criado que presenciou o milagre.
Aqui a relação mãe / filho se manifesta e também a transubstanciação que estaria presente numa outra ceia, naquilo que se consagraria como a Eucaristia.
O terceiro e culminante momento seria a metade restante da baia, onde vemos a corte angelical sustentando o trono divino, iluminando e incensando a excelsa condição do Cristo que se encontra no centro e sentado no trono, tendo sua mãe atrás. Maria aparece como a Theotókos, Mãe e guardiã do Filho de Deus, numa postura hierática e soberana, coroada e iluminada pelo Espírito Santo.
A imagem de Maria é aqui elevada a uma dignidade sublime, uma hierofania, uma aparição de uma mulher resplandecente, coroada com 12 estrelas como no Apocalipse, trajando um manto azul de extrema beleza e delicadeza, a cabeça antes coberta com um véu (relíquia que se encontra em Chartres) e depois a Coroa.
Nesse vitral, encontramos elementos muito próximos da tradição bizantina no que diz respeito à composição e ornamentação, mas a matriz de vidro, transpassada pela luz, configura esta imagem uma dimensão tão sublime quanto os fundos dourados de Bizâncio.
Nela podemos ver a idéia da representação da Máter Ecclesiae (Mãe Igreja), a Igreja triunfante e soberana, guardiã da Boa Nova (da ortodoxia na interpretação dos Evangelhos e da doutrina cristã). É também a metáfora da Arca da Aliança que trás a palavra de salvação entre o povo de Deus.
A manifestação dos símbolos de poder (trono, coroa, lei) lhe conferem também o status de Auctoritas e Sedes Sapientiae (Sabedoria Divina) e, portanto, repositório de sua Autoridade, assegurando a concepção medieval de que a Salvação só estaria exclusivamente dentro da Igreja Católica Apostólica Romana.