A concentração de
terras e de riqueza nas mãos dos patrícios durante a República romana forneceu
o ambiente para inúmeras tensões, seja pelas disputas internas pelo poder, seja
pelas necessidades da plebe, que excluída das riquezas, poderia se tornar um
grande perigo e o bom exemplo disso foi o tratamento dado aos irmãos Graco,
Tibério e Caio, que durante o exercício da condição de tribunos da Plebe,
pagaram com suas vidas já que ousaram a propor uma divisão de parte das terras
conquistadas aos plebeus (a tão temida reforma agrária).
Como tamanha audácia
não poderiam ficar impune, Tibério e Caio Graco foram mortos pelo Senado, 133 e
121 a.C. respectivamente, e ao invés da partilha de terras, a plebe passava a
receber jogos, cuja entrada era gratuita e entre as atrações ou antes delas,
pão era também gratuitamente distribuído, num gesto de grandeza e poder do
governo de Roma ao seu povo.
Os jogos eram de
diversas naturezas: corridas de cavalos em bigas (carros com 2 cavalos) ou
quadrigas (carros com 4 cavalos), lutas de gladiadores entre si ou contra
animais selvagens (chamadas de venatio).
Além disso, haviam os jogos pagos, os muneras
(em latim significa obrigação), jogos que deveriam honrar a memória de um morto
ou então eram uma forma de entretenimento que um poderoso patrício usava para
se promover perante a plebe, tendo em vista, a ocupação de um futuro cargo
público.
Os venatio: homens versus bestas selvagens
O gladiador era um
escravo treinado para lutar ou um
criminoso que tivera como condenação a luta na arena, podendo armado lutar em
defesa de sua vida. O termo é derivado de gladius,
a espada curta romana e daí, gladiator,
mas esta espada não era a única possibilidade de armamento, existindo várias
categorias: retiarius (usando tridente
e rede, além de uma faca curta); mirmillo
(capacete, escudo retangular e espada); equites
(montava a cavalo, usando lança e escudo curto redondo, enfrentando apenas
adversários de mesma categoria); hoplomachus
(armado com o gládio e capacete, tendo faixas de couro que cobriam pulsos,
pernas e tórax); dimachaeri (lutador
dom dois gládios); thraces (usava o
gládio, o escudo redondo pequeno e capacete, além de caneleiras de metal e
faixas de couro para a proteção dos braços); andabatæ (montava a cavalo e usava lança, enfrentando apenas
oponentes montados) e o secutor
(usava um escudo grande retangular, gládio e capacete com viseira, além de
faixas de proteção nos braços e caneleiras).
O gosto pelos
espetáculos sangrentos era algo muito forte na cultura romana, sendo as arenas
um ponto de convergência entre os diferentes segmentos da sociedade romana,
independentemente da sua condição econômica, pois para as famílias abastadas,
patrocinar jogos era algo de grande prestígio entre os poderosos, da mesma
forma que assisti-los, era um momento sublime, um exercício de poder que
pairava sobre o sentimento de “ser romano” e poder decidir se o agonizante
derrotado seria morto pelo “golpe de misericórdia”, gritando “iúgula, iúgula”
que significa em latim “degola ” ou não, situação condensada no gesto do
polegar apontando para cima, respectivamente.
Construído pela
dinastia Flávia, entre os reinados de Vespasiano (69-79 d.C.) e Tito (79-81
d.C.), o anfiteatro Flávio, como fora chamado inicialmente, representou a
principal arena do mundo romano, sendo erguido não muito longe do palácio que o
imperador Nero (54-68 d.C.) erguera, depois de incendiar aquela parte da cidade
e assim, os imperadores Flávios, devolveram uma porção da cidade que teria sido
“confiscada” pelo insano Nero.
Maquete da Roma antiga - Museo della Civilitá - Roma.
O nome Coliseu (observe a maquete acima, no centro da imagem ao alto) deriva
de uma gigantesca estátua de Nero (colossos
em grego que passa ao latim como coliseum)
junto aos jardins do palácio. O anfiteatro era uma elipse de 188 por 156
metros, tendo 49 metros de altura e chegava a comportar cerca de 50 mil
espectadores, atraindo pessoas de todas as condições sociais, separadas em
setores distintos e que ali buscavam diversão. Além das lutas, são registradas
a realização de batalhas navais encenadas, tendo as águas dos aquedutos ali
desviadas e assim, a arena de areia dava lugar a um “lago artificial”,
demonstração clara do refinamento tecnológico e o gosto pela monumentalidade
que os romanos tinham.
Da literatura o cinema
tomou emprestado a expressão “épico” que provém da epopéia, que, segundo Emil
Staiger, em seu trabalho Conceitos
Fundamentais da Poética, coloca o leitor como “alguém que acompanha o
percurso do heroi, com suas aventuras, lutas e tensões” e assim, no cinema, o
heroi é o protagonista do filme, aquele pelo qual o público acompanhará passo a
passo, numa torcida desenfreada pelo seu sucesso, que nem sempre ocorre,
dependendo do personagem abordado ou do filme que é produzido, pois alguns
diretores preferem retratar um anti-herói ou então, um personagem secundário
pode roubar a cena do protagonista e assim, o mais importante é assistir o
filme.
Dentre meus filmes preferidos,
posso mencionar dois que se colocam em contextos de produção bem distintos: o Spartacus de Stanley Kubrick de 1960 e o
Gladiador de Ridley Scott de 2000. Há
entre eles um abismo de 40 anos, além de questões históricas distintas, tanto
no que diz respeito à época em que foram produzidos, quanto ao período que
evocam, mas ambos se unem no empunhar de um gládio por um herói que, nas arenas
ou fora, delas buscava defender seus ideais.
Spartacus existiu,
viveu no fim da República romana e se trata de um dos maiores inimigos que Roma
tinha até então enfrentado dentro de seu território, pois sua revolta,
acompanhada pela libertação de outros escravos numa proporção sem precedentes
(falamos em 20.000 escravos) que chegou a ameaçar de modo consistente o poder
romano e teve que ser sufocado, alias, com muita dificuldade em 71 a.C. pelas
tropas do general Crasso, responsável pela sua crucificação (morte cruel e
lenta destinada aos ladrões e subversivos) e de seus 4.000 companheiros ao
longo da Via Ápia (estrada que ligava Roma ao sul da península, passando pela Campânia,
foco inicial da revolta junto à cidade de Cápua, conforme o mapa ao lado).
A imagem dos oprimidos
se erguendo contra os opressores, sintetizada não só na atuação de Kirk Douglas
atuando no papel de Spartacus numa tentativa de resgatar a sua altivez e romper
a ordem imposta aos escravos ou ainda a fala final do líder escravo, ao se
referir ao companheiro Antonius, o qual acabara de matar: “ele voltará e na
forma de milhões”, uma defesa clara da liberdade que ecoava na década de 1960
dentro da Guerra Fria que estava em franca atividade e a consequente
identificação dos movimentos socialistas com herói Spartacus.
Já o general Maximus
Décimus Meridius é um personagem fictício, interpretado por Russell Crowe, como
o mais destacado militar do reinado de Marco Aurélio (ficou conhecido como o “imperador
filósofo” em virtude do gosto que tinha pelos estudos e pela esmerada formação,
sendo autor de um conjunto de pensamentos escritos em grego e influenciado pelo
estoicismo) que governou entre 161 e 180 d.C., representando o auge do Império
Romano e assim, dominava da atual Grã-Bretanha até o norte da África, de
Portugal ao Iraque, significando controlar cerca de um quarto da humanidade.
Num caminho distinto de
Kubrick, Ridley Scott construiu uma narrativa fictícia com personagens reais ou
não, conduzindo o espectador por um ciclo de ações que unem a primeira cena do
heroi com seu último momento. Marco Aurélio nunca pensou em transformar Roma
novamente numa República e muito menos foi assassinado por seu filho Cômodo,
tal qual aparece no filme. Marco Aurélio morreu de tifo, legando o Império a
Cômodo, o qual condizia com a representação de Joaquin Phoenix, mostrando um
imperador cruel, completamente instável e sem escrúpulos ou mesmo virtudes, que
costumava descer às arenas para cumprimentar os gladiadores, cujo final foi a
morte decorrente de uma conspiração, levando Roma para o início de uma longa
crise militar que colaborou para a destruição do Império.
Scott conseguiu com os
requintes técnicos recuperar a força do espetáculo, usando os efeitos especiais
para reconstruir o esplendor das arenas, especialmente o Coliseu, que na fala
do fictício senador Gracus: “Roma é a plebe! O coração pulsante de Roma não é o
mármore do Senado, mas sim a areia do Coliseu”. A primeira frase aparece em
Spartacus, mas ganha uma dimensão própria na descrição da política do Panis et circensis, ou seja, o Pão e
Circo oferecidos à plebe, que controlada e manipulada, que assim abria caminho
para que a política fosse conduzida pela elite patrícia, mas é importante
lembrar que tal circunstância já era bem comum à época de Spartacus.
O gosto pelo sangue
derramado dos inimigos e escravos nas areias, acompanhado dos gritos em êxtase
da multidão aproximam a Antiguidade dos tempos atuais, guardadas as devidas
proporções, pois os espetáculos de massa ainda tem um grande apelo entre a
população ocidental ou entre aqueles que convivem com o “modo ocidental” de
viver numa visão mais “globalizada” : a sociedade de consumo, de massa e de
espetáculo.
Mas diferentemente do
mundo antigo, hoje já não há morte ou sangue abundante e os espetáculos e o pão
são pagos, diga-se de passagem, bem caro e ainda assim, conseguem seduzir
milhões que projetam nesses “novos herois ou pseudo-herois” da atualidade seus
desejos e vontades, tudo delimitado de maneira muito clara pelos índices de
audiência, os quais geram pesados patrocínios e infinitos dividendos aos
investidores. Como então, não deixar de relacionar o tema do “pão e circo” com
as manipulações realizadas junto a eventos como o carnaval e o futebol no
Brasil? Ou ainda, na exibição de intermináveis modalidades de “reality shows”
por diferentes emissoras brasileiras, buscando atrelar o espectador a uma
eterna dependência que envolve interação (por telefone ou pela internet), venda
de conteúdo exclusivo ou o vasto negócio dos patrocinadores que anunciam
durante o programa, atrelando suas marcas ao “produto” vendido?
Andy Warhol - uma das estrelas da Pop Art
Encerro este tópico com
uma reflexão sobre a fala do general Maximus, elevando o moral de suas tropas
antes de enfrentar os resistentes germânicos: “Aquilo que fazemos em vida ecoa
na Eternidade”.
Este ideal que os
antigos buscavam não pode ser visto como mero desejo de fama, mas sim um
sentimento de poder que faria daquele que fosse consagrado pela glória um
“imortal”, isto é, seu nome memorizado ao longo dos séculos, mas em nosso tempo
cabe a pergunta: a glória é alcançada por mérito, como uma consequência e
reconhecimento ou glória por si só? Numa posição mais afinada com nossa época,
o artista plástico estadunidense Andy Warhol (1931-1987) profetizou a busca
pelos holofotes se resumiria a “15 minutos de fama”, portanto, cada época e
cultura vêem a notoriedade de um modo diferente, dentro de seus conceitos e
valores, mas infelizmente, em nossos tempos, os valores que falam mais alto são
os financeiros...
Ave Spartacus! Ave
Warhol!
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