As Ricas Horas do Duque de Berry

As Ricas Horas do Duque de Berry
As Ricas Horas do Duque de Berry. Produção dos irmãos Limbourg - séc. XV. Mês de julho

domingo, 5 de maio de 2013

Panis et circenses: entretenimento como forma de dominação




A concentração de terras e de riqueza nas mãos dos patrícios durante a República romana forneceu o ambiente para inúmeras tensões, seja pelas disputas internas pelo poder, seja pelas necessidades da plebe, que excluída das riquezas, poderia se tornar um grande perigo e o bom exemplo disso foi o tratamento dado aos irmãos Graco, Tibério e Caio, que durante o exercício da condição de tribunos da Plebe, pagaram com suas vidas já que ousaram a propor uma divisão de parte das terras conquistadas aos plebeus (a tão temida reforma agrária).

Como tamanha audácia não poderiam ficar impune, Tibério e Caio Graco foram mortos pelo Senado, 133 e 121 a.C. respectivamente, e ao invés da partilha de terras, a plebe passava a receber jogos, cuja entrada era gratuita e entre as atrações ou antes delas, pão era também gratuitamente distribuído, num gesto de grandeza e poder do governo de Roma ao seu povo. 

Os jogos eram de diversas naturezas: corridas de cavalos em bigas (carros com 2 cavalos) ou quadrigas (carros com 4 cavalos), lutas de gladiadores entre si ou contra animais selvagens (chamadas de venatio). Além disso, haviam os jogos pagos, os muneras (em latim significa obrigação), jogos que deveriam honrar a memória de um morto ou então eram uma forma de entretenimento que um poderoso patrício usava para se promover perante a plebe, tendo em vista, a ocupação de um futuro cargo público.

Os venatio: homens versus bestas selvagens


O gladiador era um escravo treinado para lutar  ou um criminoso que tivera como condenação a luta na arena, podendo armado lutar em defesa de sua vida. O termo é derivado de gladius, a espada curta romana e daí, gladiator, mas esta espada não era a única possibilidade de armamento, existindo várias categorias: retiarius (usando tridente e rede, além de uma faca curta); mirmillo (capacete, escudo retangular e espada); equites (montava a cavalo, usando lança e escudo curto redondo, enfrentando apenas adversários de mesma categoria); hoplomachus (armado com o gládio e capacete, tendo faixas de couro que cobriam pulsos, pernas e tórax); dimachaeri (lutador dom dois gládios); thraces (usava o gládio, o escudo redondo pequeno e capacete, além de caneleiras de metal e faixas de couro para a proteção dos braços); andabatæ (montava a cavalo e usava lança, enfrentando apenas oponentes montados) e o secutor (usava um escudo grande retangular, gládio e capacete com viseira, além de faixas de proteção nos braços e caneleiras).

O gosto pelos espetáculos sangrentos era algo muito forte na cultura romana, sendo as arenas um ponto de convergência entre os diferentes segmentos da sociedade romana, independentemente da sua condição econômica, pois para as famílias abastadas, patrocinar jogos era algo de grande prestígio entre os poderosos, da mesma forma que assisti-los, era um momento sublime, um exercício de poder que pairava sobre o sentimento de “ser romano” e poder decidir se o agonizante derrotado seria morto pelo “golpe de misericórdia”, gritando “iúgula, iúgula” que significa em latim “degola ” ou não, situação condensada no gesto do polegar apontando para cima, respectivamente.

Construído pela dinastia Flávia, entre os reinados de Vespasiano (69-79 d.C.) e Tito (79-81 d.C.), o anfiteatro Flávio, como fora chamado inicialmente, representou a principal arena do mundo romano, sendo erguido não muito longe do palácio que o imperador Nero (54-68 d.C.) erguera, depois de incendiar aquela parte da cidade e assim, os imperadores Flávios, devolveram uma porção da cidade que teria sido “confiscada” pelo insano Nero.

Maquete da Roma antiga - Museo della Civilitá - Roma. 

O nome Coliseu (observe a maquete acima, no centro da imagem ao alto) deriva de uma gigantesca estátua de Nero (colossos em grego que passa ao latim como coliseum) junto aos jardins do palácio. O anfiteatro era uma elipse de 188 por 156 metros, tendo 49 metros de altura e chegava a comportar cerca de 50 mil espectadores, atraindo pessoas de todas as condições sociais, separadas em setores distintos e que ali buscavam diversão. Além das lutas, são registradas a realização de batalhas navais encenadas, tendo as águas dos aquedutos ali desviadas e assim, a arena de areia dava lugar a um “lago artificial”, demonstração clara do refinamento tecnológico e o gosto pela monumentalidade que os romanos tinham.

Da literatura o cinema tomou emprestado a expressão “épico” que provém da epopéia, que, segundo Emil Staiger, em seu trabalho Conceitos Fundamentais da Poética, coloca o leitor como “alguém que acompanha o percurso do heroi, com suas aventuras, lutas e tensões” e assim, no cinema, o heroi é o protagonista do filme, aquele pelo qual o público acompanhará passo a passo, numa torcida desenfreada pelo seu sucesso, que nem sempre ocorre, dependendo do personagem abordado ou do filme que é produzido, pois alguns diretores preferem retratar um anti-herói ou então, um personagem secundário pode roubar a cena do protagonista e assim, o mais importante é assistir o filme.


Dentre meus filmes preferidos, posso mencionar dois que se colocam em contextos de produção bem distintos: o Spartacus de Stanley Kubrick de 1960 e o Gladiador de Ridley Scott de 2000. Há entre eles um abismo de 40 anos, além de questões históricas distintas, tanto no que diz respeito à época em que foram produzidos, quanto ao período que evocam, mas ambos se unem no empunhar de um gládio por um herói que, nas arenas ou fora, delas buscava defender seus ideais.



Spartacus existiu, viveu no fim da República romana e se trata de um dos maiores inimigos que Roma tinha até então enfrentado dentro de seu território, pois sua revolta, acompanhada pela libertação de outros escravos numa proporção sem precedentes (falamos em 20.000 escravos) que chegou a ameaçar de modo consistente o poder romano e teve que ser sufocado, alias, com muita dificuldade em 71 a.C. pelas tropas do general Crasso, responsável pela sua crucificação (morte cruel e lenta destinada aos ladrões e subversivos) e de seus 4.000 companheiros ao longo da Via Ápia (estrada que ligava Roma ao sul da península, passando pela Campânia, foco inicial da revolta junto à cidade de Cápua, conforme o mapa ao lado).

A imagem dos oprimidos se erguendo contra os opressores, sintetizada não só na atuação de Kirk Douglas atuando no papel de Spartacus numa tentativa de resgatar a sua altivez e romper a ordem imposta aos escravos ou ainda a fala final do líder escravo, ao se referir ao companheiro Antonius, o qual acabara de matar: “ele voltará e na forma de milhões”, uma defesa clara da liberdade que ecoava na década de 1960 dentro da Guerra Fria que estava em franca atividade e a consequente identificação dos movimentos socialistas com herói Spartacus.


Já o general Maximus Décimus Meridius é um personagem fictício, interpretado por Russell Crowe, como o mais destacado militar do reinado de Marco Aurélio (ficou conhecido como o “imperador filósofo” em virtude do gosto que tinha pelos estudos e pela esmerada formação, sendo autor de um conjunto de pensamentos escritos em grego e influenciado pelo estoicismo) que governou entre 161 e 180 d.C., representando o auge do Império Romano e assim, dominava da atual Grã-Bretanha até o norte da África, de Portugal ao Iraque, significando controlar cerca de um quarto da humanidade.

Num caminho distinto de Kubrick, Ridley Scott construiu uma narrativa fictícia com personagens reais ou não, conduzindo o espectador por um ciclo de ações que unem a primeira cena do heroi com seu último momento. Marco Aurélio nunca pensou em transformar Roma novamente numa República e muito menos foi assassinado por seu filho Cômodo, tal qual aparece no filme. Marco Aurélio morreu de tifo, legando o Império a Cômodo, o qual condizia com a representação de Joaquin Phoenix, mostrando um imperador cruel, completamente instável e sem escrúpulos ou mesmo virtudes, que costumava descer às arenas para cumprimentar os gladiadores, cujo final foi a morte decorrente de uma conspiração, levando Roma para o início de uma longa crise militar que colaborou para a destruição do Império.

Scott conseguiu com os requintes técnicos recuperar a força do espetáculo, usando os efeitos especiais para reconstruir o esplendor das arenas, especialmente o Coliseu, que na fala do fictício senador Gracus: “Roma é a plebe! O coração pulsante de Roma não é o mármore do Senado, mas sim a areia do Coliseu”. A primeira frase aparece em Spartacus, mas ganha uma dimensão própria na descrição da política do Panis et circensis, ou seja, o Pão e Circo oferecidos à plebe, que controlada e manipulada, que assim abria caminho para que a política fosse conduzida pela elite patrícia, mas é importante lembrar que tal circunstância já era bem comum à época de Spartacus.

O gosto pelo sangue derramado dos inimigos e escravos nas areias, acompanhado dos gritos em êxtase da multidão aproximam a Antiguidade dos tempos atuais, guardadas as devidas proporções, pois os espetáculos de massa ainda tem um grande apelo entre a população ocidental ou entre aqueles que convivem com o “modo ocidental” de viver numa visão mais “globalizada” : a sociedade de consumo, de massa e de espetáculo.

Mas diferentemente do mundo antigo, hoje já não há morte ou sangue abundante e os espetáculos e o pão são pagos, diga-se de passagem, bem caro e ainda assim, conseguem seduzir milhões que projetam nesses “novos herois ou pseudo-herois” da atualidade seus desejos e vontades, tudo delimitado de maneira muito clara pelos índices de audiência, os quais geram pesados patrocínios e infinitos dividendos aos investidores. Como então, não deixar de relacionar o tema do “pão e circo” com as manipulações realizadas junto a eventos como o carnaval e o futebol no Brasil? Ou ainda, na exibição de intermináveis modalidades de “reality shows” por diferentes emissoras brasileiras, buscando atrelar o espectador a uma eterna dependência que envolve interação (por telefone ou pela internet), venda de conteúdo exclusivo ou o vasto negócio dos patrocinadores que anunciam durante o programa, atrelando suas marcas ao “produto” vendido?

Andy Warhol - uma das estrelas da Pop Art

Encerro este tópico com uma reflexão sobre a fala do general Maximus, elevando o moral de suas tropas antes de enfrentar os resistentes germânicos: “Aquilo que fazemos em vida ecoa na Eternidade”.
Este ideal que os antigos buscavam não pode ser visto como mero desejo de fama, mas sim um sentimento de poder que faria daquele que fosse consagrado pela glória um “imortal”, isto é, seu nome memorizado ao longo dos séculos, mas em nosso tempo cabe a pergunta: a glória é alcançada por mérito, como uma consequência e reconhecimento ou glória por si só? Numa posição mais afinada com nossa época, o artista plástico estadunidense Andy Warhol (1931-1987) profetizou a busca pelos holofotes se resumiria a “15 minutos de fama”, portanto, cada época e cultura vêem a notoriedade de um modo diferente, dentro de seus conceitos e valores, mas infelizmente, em nossos tempos, os valores que falam mais alto são os financeiros...
Ave Spartacus! Ave Warhol!

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