As Ricas Horas do Duque de Berry

As Ricas Horas do Duque de Berry
As Ricas Horas do Duque de Berry. Produção dos irmãos Limbourg - séc. XV. Mês de julho

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Suposições e invenções sobre uma "Bíblia de 1500 anos"

 


Caros leitores,

Hoje, alguns alunos vieram me perguntar sobre uma "Bíblia muito antiga" (foto acima) recentemente encontrada (em 2000), mas que a notícia só foi revelada a pouco tempo. A matéria saiu em 2013 e ainda continua rolando por aí, em diferentes sites  e aí achei a dita notícia, que alias estava copiada e recopiada em diferentes blogs, sites (muitos de caráter religioso) e uma breve matéria no Youtube. Um ou outro texto citava a fonte e foi justamente num destes que citavam a fonte, que eu encontrei um texto mais completo que reproduzo (grifado em amarelo) e faço o contra-argumento logo abaixo, buscando apontar sob a luz da História, o que teríamos de pertinente ou não nessa "novidade" de artefato encontrado.

Segue a reportagem:

As páginas do livro, do século V ou VI, são de couro tratado e estão escritas em um dialeto do aramaico, língua falada por Jesus. Suas páginas hoje estão negras, por causa da ação do tempo, mas as letras douradas ainda possibilitam sua leitura.
As autoridades turcas acreditam que se trata de uma versão autêntica do Evangelho de Barnabé, um discípulo de Jesus que ficou conhecido por suas viagens com o apóstolo Paulo, descritas no Livro de Atos.

Autoridades religiosas de Teerã insistem que o texto prova que Jesus nunca foi crucificado, não era o Filho de Deus, mas um profeta, e chama Paulo de “Enganador.” O livro também diz que Jesus ascendeu vivo ao céu, sem ter sido crucificado, e que Judas Iscariotes teria sido crucificado em seu lugar. Falaria ainda sobre o anúncio feito por Jesus da vinda do profeta Maomé, que fundaria o Islamismo 700 anos depois de Cristo. O texto prevê ainda a vinda do último messias islâmico, que ainda não aconteceu.

O começo do texto já começa um pouco enrolado, pois cita autoridades turcas e iranianas, mas não diz quais (arqueólogos, especialistas em línguas antigas, algum grupo de pesquisa de uma Universidade, etc). Este livro foi encontrado junto de um lote de antiguidades que estavam sendo contrabandeadas da Turquia e ficou retido por bastante tempo e agora foi repassado ao Museu Etnológico de Istambul, na Turquia.
A parte mais embaraçosa do texto são as afirmações das ditas "autoridades iranianas", que tendenciosamente estariam apontando o livro encontrado como uma prova da realidade e verdade do Islã e que toda doutrina cristã não passaria de uma farsa.
Em primeiro lugar, como qualquer documento antigo, este livro deverá ser traduzido e datado para verificar seu conteúdo, origem e autenticidade. 

Maomé nasceu em 570 e morreu em 632, portanto, num período posterior ao texto escrito entre os anos 400-500 e segundo a tradição islâmica teria recebido a "revelação da palavra de Allah" por volta de 610, tendo 40 anos de idade.

Chama a atenção a hipótese de "Jesus teria anunciado Maomé", uma leitura muito mais coerente com o pensamento islâmico do que com o cristão, pois para o Islã, Maomé é o último profeta, e eles então, aceitam os personagens hebreus (Adão, Moisés, Isaiais, Jeremias, Elias, etc.) e Jesus também, mas todos como profetas, cabendo a Maomé a importância maior, isto é, completa a revelação sobre os ensinamentos de Deus.
Vale lembrar também que, os muçulmanos não aguardam um "Messias" como os judeus ou como os cristãos aguardaram até Jesus nascer e assim, aparece como mais uma outra imprecisão citada no texto da reportagem.


A foto divulgada da capa mostra apenas inscrições em aramaico e o desenho de uma cruz. A Internacional News Agency, diz que a inscrição na fotografia pode ser facilmente lida por um assírio. Os assírios viviam na região que compreende hoje o território do Iraque, o nordeste da Síria, o noroeste do Irã, e o sudeste da Turquia.
A tradução da inscrição inferior, que é o mais visível diz: “Em nome de nosso Senhor, este livro está escrito nas mãos dos monges do mosteiro de alta em Nínive, no ano 1.500 do nosso Senhor”.

A agência citada aparece com o nome incompleto, podendo  ser qualquer agência internacional de notícias, talvez tenha sido a IRNA, a agência oficial de notícias do governo do Irã ou então, a AINA, que representaria a minoria assíria, que viveu ali onde hoje é a Turquia e Síria. 
Além desta dúvida, há esta tradução que o texto nos relata como elementar, quer dizer, de fácil realização, mas se é um texto escrito em siríaco, uma língua que deriva do aramaico e hoje não é mais falada, como fazer uma tradução tão rápida??? Apelar para o Google não vale.... 

O Vaticano teria demonstrado preocupação com a descoberta do livro, e pediu às autoridades turcas permitissem aos especialistas da Igreja Católica avaliar o livro e seu conteúdo, em especial o "Evangelho de Barnabé", que descreveria Jesus de maneira semelhante à pregada no Islã.


O relatório da Basij Press, que divulgou o material para a imprensa, sugere que a descoberta é tão importante que poderá abalar a política mundial. “A descoberta da Bíblia de Barnabé original irá minar a Igreja Cristã e sua autoridade e vai revolucionar a religião no mundo. O fato mais significativo, porém, é que esta Bíblia previu a vinda do profeta Maomé, mostrando a verdade da religião do Islã”.

Continuando as excentricidades, temos a citação da preocupação do Vaticano, em virtude do conteúdo talvez ser coerente com a visão do Islã. Como se trata de um texto cristão, o Vaticano está interessado em seu conteúdo, porém a colocação de um grau de "preocupação" é no mínimo tendenciosa e equivocada, pois não houve uma manifestação formal da Igreja Católica, assim, aqui se levanta a teoria conspiratória de há algo escondido, um mistério misterioso...
Porém, há um detalhe que passa despercebido: a citação de um relatório da Basij Press. De onde é esta Agência? Resposta: é a responsável pela comunicação de um grupo paramilitar xiita, defensor do regime iraniano desde 1979, implantado com a Revolução Islâmica liderada pelo aiatolá Khomeini.
Aí, portanto, aparece a motivação para colocar em tão elevado grau de importância os "possíveis conteúdos" deste livro antigo e sua ameaça ao Cristianismo. No entanto, o que foi mais bizarro nessa matéria, que como disse acima, foi reproduzida em sites de conteúdo religioso cristão aqui no Brasil, é alguns grupos pentecostais ou neo-pentecostais tentarem usar o texto a seu favor para atacar a Igreja Católica, sem perceberem que ele ataca "todas as igrejas cristãs", afinal todos aqueles que seguem os Evangelhos, independentemente da denominação, são cristãos. Alguns diriam que este tipo de postura foi um tiro no pé, eu acredito que foi um "tiro na cabeça".


A Basij afirma que o capítulo 41 do Evangelho diz: “Deus disfarçou-se de Arcanjo Miguel e mandou (Adão e Eva) embora do céu, (e) quando Adão se virou, ele notou que na parte superior da porta de entrada do céu, estava escrito La elah ELA Allah, Mohamadrasool Allah”, significando “Alá é o único Deus e Maomé o seu profeta”.

Por fim, a tradução desta parte, profundamente tendenciosa, que seria um anúncio do Corão antes do próprio profeta e que nas portas do "céu" e não Jardim do Éden teria a inscrição acima em árabe. Muito estranho, pois o Corão não nomeia o anjo que guardou as portas do Paraíso e expulsa diretamente, Adão e Eva, sem necessitar de se disfarçar.

Moral da história: qualquer fonte deve ser analisada com rigor, seja o que for, sempre tendo a cautela de contrapor as informações presentes com outras e assim, ter uma visão melhor sobre o passado e seus desdobramentos. Um pesquisador deve interrogar suas fontes, sem confiar nelas e assim, verificar se obtém respostas para suas questões ou não. A posição adotada nesta reportagem analisada é tendenciosa ao Islã, isto é, o objetivo está claro desde o começo: provar a supremacia do Islã sobre as outras crenças.

Como diz a sabedoria popular por aqui no Brasil: "Cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém". Eu acrescentaria que a boa leitura também!


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