O filme Alexandria, de Alejandro Amenábar, procurou preencher as grandes lacunas que temos em relação à vida e obra de uma importante personagem da cultura ocidental: Hipatia de Alexandria, uma matemática, astrônoma e filósofa que viveu entre 370 e 415 da Era Cristã, um contexto de profunda agitação política e religiosa em virtude da grave crise que se colocara o Império Romano.
Filha de Théon, um renomado matemático, diretor do Museu (casa das musas, sendo que cada uma das artes tinha uma respectiva musa, uma entidade protetora e inspiradora) e da Biblioteca de Alexandria, Hipatia teve uma sorte que poucas mulheres de sua época tiveram: a possibilidade de permanecer solteira, podendo assim ser livre para estudar e lecionar, sem ter que se submeter à autoridade de um homem, tudo isso com o consentimento de seu pai, que, observando as potencialidades da filha, preferiu dar-lhe uma educação muito mais ampla que uma mulher de alta condição social receberia ao invés da condição de “mãe e esposa”, que nas palavras de Théon, (Michael Logsdale), “seria a morte”.
Apesar da grande quantidade de romances e livros que procuraram retratar a célebre pensadora, o filme de Amenábar procurou fazer uma leitura mais ponderada e próxima do real: de um lado mostrava a excelência do trabalho de Hipátia, mas de outro não se esquecia de colocá-la como uma mulher rica, de uma sociedade escravista, que por mais que tentasse abrandar as diferenças entre ela (livre) e os escravos (propriedades), Hipátia ainda era alguém de condição superior que menosprezava os escravos, não tendo a crueldade de muitos senhores.
A fala de Hipátia censurando os discípulos sobre a intolerância foi exemplar: “as lutas são coisas de escravos e canalhas”, dita num momento de tensão entre dois discípulos, o choque de opiniões entre o pagão Orestes (Oscar Isaac), filho do prefeito de Alexandria e o cristão Sinésio (Rupert Evans), exatamente após a brilhante explanação do escravo de Hipátia, Davus, o qual recebera a permissão para falar sobre o sistema geocêntrico de Ptolomeu, apresentando um modelo rústico em madeira feito pelo próprio Davus.
Outro dado pertinente, é que para a resolução da contenda entre os dois discípulos, Hipátia se vale do 1º teorema de Euclides: “Se duas coisas são iguais a uma terceira, as três são iguais entre si”, sendo que, no desfecho do destino de Hipátia o mesmo teorema será evocado por seu ex-discípulo no desfecho do filme, o já então bispo Sinésio de Cirene para tentar submeter Hipátia à fé cristã através do batismo público.
O papel de Davus (Max Minguella) é conduzir Hipátia (Rachel Weisz) para a inquietação, seja dentro dos valores defendidos pela filósofa, seja pela mudança que Davus vai apresentando ao longo do filme: primeiro um escravo, submisso e obediente, mas que aos poucos se aproxima dos valores cristãos como a piedade e a solidariedade, mesmo que isso lhe custasse dor e sofrimento, como foi a surra recebida de Théon ao se colocar como culpado junto a outra escrava da casa, se dispondo a apanhar em seu lugar, mesmo que naquele contexto, não houvesse nada que justificasse o seu castigo.
Após a punição, Hipátia procura o escravo e aplica-lhe um bálsamo nas feridas, perguntando-lhe se de fato era cristão e Davus, lhe responde que não sabe o que dizer, pois se dissesse que não era teria cometido algo muito mais grave por trair a confiança de seu mestre. Hipátia não querendo comprometer o escravo e ao mesmo tempo se comprometer com o esclarecimento da questão, pede então que ele não diga nada, evitando com essa omissão, o comprometimento de ambos.
Um agente da mudança de Davus é o parabolani Amonius (Ashraf Barhom), integrante de uma espécie de milícia que se construíra nas entranhas da sociedade romana a partir da liberdade de culto decorrente do Édito de Milão em 313. Sua função seria a proteção aos cristãos para evitar abusos daqueles que se recusavam a obeceder a tolerância concedida pelo imperador e ao mesmo tempo, zelar pela entrega de pão aos pobres, mas gradativamente, passaram a oprimir e perseguir os inimigos dos cristãos. O termo parabolani deriva de parábola, uma forma de linguagem alegórica muito utilizada nos Evangelhos para a transmissão da doutrina ensinada por Jesus compondo, portanto, uma linguagem mais simples e acessível para a difusão da fé cristã entre as pessoas mais humildes.
Amonius tem um papel chave na exemplificação da expansão do cristianismo quando discutiu com um romano pagão, defendendo o cristianismo e desafiando-o a atravessar o fogo sagrado aceso da ágora (espaço público da cidade aberto a todos, do qual, aliás, deriva o nome original do filme, que aqui no Brasil foi lançado diretamente em DVD com o nome de Alexandria) e se os deuses existissem de verdade, eles protegeriam aquele rico patrício. Nesse momento, Amonius entre no meio do braseiro e o atravessa, escapando ileso e depois ele e mais outro parabolani jogam o romano pagão dentro do braseiro e assim, este tem suas suntuosas vestes em chamas, sendo acudido por outros, mas mesmo assim, muito queimado, servindo como demonstração de força do poder do deus cristão em relação aos deuses romanos.
No momento do ataque dos pagãos aos cristãos, Davus entra em crise, pois os escravos deveriam atacar os cristãos, seguindo seus senhores, mas alguns escravos aproveitam o ensejo para assumirem-se como cristãos e contra-atacam seus senhores, dentre eles outro escravo da casa de Hipátia ataca Théon, ferindo-lhe gravemente, que só foi detido com a ação de Orestes. Davus some na multidão e depois mais tarde, retorna à casa de seus senhores, mas entra armado, tentando violentar Hipatia (uma vez que ela não era casada, pressupunha-se que fosse virgem), mas se arrepende e não consegue consumar o ato, sendo libertado por Hipatia e a partir daquele momento se junto aos cristãos.
Nesse complexo cenário religioso está a importância da Biblioteca de Alexandria, a qual se encontrava junto do Serapeum, o templo de Serápis, divindade greco-romana derivada do contexto helenístico, ou seja, a intensificação da cultura grega no interior do Egito após a conquista deste território por Alexandre Magno. Serápis está relacionado com Júpiter, representado com forma humana, tendo sobre sua cabeça um vaso, que lhe serve como coroa, aludindo à fartura e fertilidade.
As origens da Biblioteca remontariam ao período de Ramsés II(1285 a.C.), mas até hoje historiadores e arqueólogos debatem sobre a existência desse prédio nunca encontrado que teria guardado uma coleção real de pergaminhos. Com a conquista do Egito por Alexandre em 332 a.C. e a fundação de Alexandria, ali se somaria aos rolos da coleção real existente para a formação de uma biblioteca, onde todo pergaminho que existisse em seus domínios deveria ter uma cópia ali guardada, representando uma gigantesca concentração de saberes de diferentes épocas e lugares, um tesouro de inestimável valor.
Planta baixa da cidade de Alexandria, destacando diferentes construções, dentre eles o Serapeum e o Museu.
Ratos, insetos e tensões políticas sempre foram grandes inimigos das bibliotecas, dificultando sua conservação ou ainda, sob as “luzes das tochas” idéias muito mal iluminadas resolveram atentar contra o conhecimento, sob as justificativas mais bizarras ou “mais nobres”, preferindo a queima do livro, para cegar e emudecer mais a Humanidade. Justamente na transição do Império para o Cristianismo, a Biblioteca foi vítima de mais um ataque em virtude da associação direta de sua existência com as crenças pagãs e assim, foi em nome da fé que o bispo Teófilo de Alexandria ordenou a sua destruição, junto dos ídolos e altares dos deuses, que a partir de 391 d.C., tornaram-se ilegais, dando lugar aos altares dos templos cristãos.
Quanto aos incêndios, foram vários, mas a carência de fontes somada à controvérsia das fontes remanescentes gerou uma grande confusão: Júlio César chegou atacar o Egito antes de se envolver com Cleópatra VII (rainha egípcia de origem grega, descendente da dinastia dos Ptolomeus, fundada por Ptolomeu I, general macedônico de Alexandre Magno que assumiu o controle do Egito a partir de 322 a.C.) e colocá-la no trono e alguns relatos mencionam a destruição de alguns milhares de rolos de uma “coleção de livros”, que é o significado de Biblioteca, mas não significa que se tratava do mesmo acervo guardado no Serapeum.
Dessa forma, observamos de outro ângulo as destruições e recomposições do acervo da Biblioteca, desfazendo aquela visão equivocada que apresentava a invasão árabe como a responsável pela destruição integral da Biblioteca. Houve sim um incêndio causado pelo califa Omar em 640 d. C. durante a conquista do Egito pelos árabes.
Alexandria foi um dos mais importantes centros culturais da cultura ocidental por mais de um milênio, reunindo pensadores, letrados e discípulos que vieram de diferentes partes para ali estudar e dali levar cultura às suas terras de origem. E dessa forma, a destruição desse acervo levou a uma perda irreparável do conhecimento existente no mundo antigo, restando a nossa época uma pequena fração daquilo que existira no passado.
O filme Alexandria acabou construindo uma dupla imagem entre a Biblioteca e a personagem central Hipátia, que pouco a pouco, viu seu espaço desaparecer em virtude da crescente influência política que os cristãos passaram a ter, especialmente com a ascensão de Cirilo (Samy Samir) como bispo de Alexandria, logo após a morte de Teófilo, o qual incitou seus fiéis à perseguição aos judeus e depois dos pagãos e na sequência, aos cristãos insubmissos como o caso de Orestes, que mesmo sendo prefeito da cidade, o símbolo do poder imperial, viu seu prestígio ser ameaçado, tendo que inclusive escolher entre o cumprimento estrito da fé cristã e sua relação com Hipátia, sendo que este último dado, não existem tantas informações para saber se assim fora, mas muito provavelmente, se coloca dentro da licença poética do diretor para a construção da narrativa do filme.
Dentro da poética emocional e psicológica do filme, Davus tentou evitar um fim trágico para Hipátia, mas os parabolani já tinham encontrado a filósofa que recusara a escolta, querendo evitar mais embaraços para Orestes. Davus, porém, sugere que ao invés de “esfolá-la” como muitos ali pretendiam, que eles não “sujassem suas mãos com sangue impuro” e assim ficara resolvido pelo apedrejamento. Enquanto os parabolani recolhiam pedras, Davus procura retribuir a piedade que recebera de Hipátia, sufocando-a e assim, sua morte seria mais rápida. Hipátia tem seus olhos focados no teto da antiga Biblioteca, transformada em igreja, sendo que seus últimos momentos foram a contemplação da luz passando pela abertura e, num jogo de luz e sombra, se construía uma elipse, a forma que mais tarde seria confirmada como a correta para explicar a órbita dos planetas.
Os relatos que falam da morte de Hipátia em 415 nos apresentam uma morte bem cruel, sendo seu corpo arrastado pelas ruas e depois queimado numa pira, para que suas cinzas fossem espalhadas ao vento e não lhe restasse nenhuma memória. Apesar da concretização da violência, o nome de Hipátia continuou vivo na cultura ocidental.
Ressalta-se aqui um dado importantíssimo: em virtude da ascensão do Cristianismo e de seu papel na sociedade romana, o poder político conseguiu subverter a própria doutrina que foi sendo contrariada ao passo que seus líderes buscaram o conflito a intolerância, gerando mais dor e sofrimento, num contexto que deveria ser o oposto, uma vez que a mensagem de Jesus é a defesa da justiça, da liberdade, da paz e do amor ao próximo, cabendo aquele que foi ofendido nunca reagir, mas sim oferecer a outra face. Infelizmente, estas premissas ficaram para trás quando o poder e a força falaram mais alto, tendo como justificativa a defesa da fé e de Deus.
Sobre Hipátia, as lacunas são gigantescas: não restaram nenhum de seus trabalhos e aquilo que lhe atribuem é resultado de menções de outros autores, mas a frequência e quantidade de informações que aparecem nessas diferentes citações nos sublinha a sua importância.
Seu reconhecimento foi aparecendo de diferentes maneiras: o pintor Rafael Sanzio em seu afresco Escola de Atenas a incluiu entre os grandes sábios, sendo a única mulher ali presente, colocando-a em pé, vestindo branco e numa posição de destaque, ao observarmos a imagem, na região esquerda, não muito longe de Averróis (seu nome original era Ibn Roshd, tradutor e comentador árabe de Aristóteles) que aparece de turbante, usando verde e Alexandre Magno, conforme podemos observar abaixo.
Detalhe do afresco "Escola de Atenas" , presente nos aposentos papais que hoje integram os Museus do Vaticano, sendo obra do pintor Rafael Sanzio, entre 1508 e 1511.
Já nos textos literários, de autores como o filósofo francês Voltaire e historiador inglês Edward Gibbon no século XVIII não deixaram de esquecê-la, ao destacar seu papel dentro do pensamento neoplatônico, além dos conhecimentos ligados à matemática e astronomia, aliás, valendo-se dela como um contraponto ao fanatismo religioso que se disseminou na época de Hipátia e depois se manifestou em muitos outros momentos ao longo dos séculos, infelizmente.
Apesar de estarmos numa época tão diferente da ambientada pelo filme, o discurso radical e intolerante não desapareceu e ainda se faz vivo, querendo usar argumentos nobres para mais uma vez, calar, censurar e até exterminar tudo aquilo que é tido por “diferente”, que dentro desta lógica se torna sinônimo de “perigoso” e por isso deveria ser proibido ou destruído, segundo os delírios radicalizantes da intolerância, fato que sempre representam uma grave perda para a Humanidade.
Precisamos de luz (conhecimento) para iluminar nossas ações e decisões, mas que sejam sempre pautadas na dignidade, na liberdade, igualdade, justiça e na tolerância entre todos, independentemente, de qualquer condição, dentro deste complexo universo que hoje soma cerca de sete bilhões de indivíduos.
Ótima resenha ! Parabéns !
ResponderExcluirParabéns pelo excelente trabalho. Ajudou muito em um trabalho acadêmico. Foi citada nas referências como fonte de pesquisa.
ResponderExcluirParabéns pela resenha.
ResponderExcluirnossa, muito bem explicado, detalhado...
ResponderExcluirparaens me ajudou no meu trabalho e apresentacao academica...
gratidão
Pessoal, eu fiz um vídeo sobre a filósofa em meu canal no Youtube, e chama-se "Hipátia de Alexandria, feminismo e liberdade de expressão". Quem quiser, só entrar aqui e dar uma conferida: http://youtu.be/sWPQJpfUL0s
ResponderExcluirMuito obrigada prof Feitosa.
ResponderExcluirSe me permite acrescentar,o Paganismo e o Cristianismo foram USADOS pelo Império Romano.
Quem matou e vilipendiou foi o Império Romano; na busca do poder e controle sobre tudo e sobre todos.
Onde se passa a narrativa do filme
ResponderExcluirqual o significado da entrega que Hipátia faz do lenço com sangue, na visão da Gnose ?
ResponderExcluirAchei muito bom gostei em 😊
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